Um viandante é uma pessoa que coloca aos ombros a sua mochila carregada de coisas importantes - tais como a escova de dentes, o sabonete, o casaco e o chapéu - e vai viajar para terras distantes. Quero dizer, o viandante não passeia próximo da sua casa, da sua escola, ou do seu escritório. Ele toma um barco ou um comboio, por exemplo, e desce num local longínquo, que pode ser uma praia, um bosque ou uma cidade. Depois, não permanece aí durante muito tempo. Descansa um pouco, recolhe a bagagem, consulta o mapa, escolhe um destino e põe-se a caminho.
O viandante da nossa história, como todos os outros viandantes com quem se cruzava nas suas andanças, pouco parava. Contudo, destacava-se dos demais por duas características particulares: em primeiro lugar, por os pais, babosos do seu rebento, o haverem baptizado com o nome de Amável; em segundo lugar, por este nosso amável viandante ser, na verdade, um incorrigível refilão.
Estranha ironia, que um homem tão rezingão, tão pronto a encontrar defeitos em tudo e em todos, tivesse, afinal, o mais delicado dos nomes!
Sempre crítico, o viandante Amável saltitava, impaciente, de terra para terra, à procura do local ideal para viver. Porém, cada cidade que visitava lhe parecia mais desagradável do que a anterior, e a sua irritação não tinha limites.
É que ao viandante Amável agradavam as moradias de amplas janelas e belos jardins, mas desgostavam os altíssimos edifícios em betão que escureciam as ruas, tornando-as estreitas, húmidas e sombrias.
O viandante Amável apreciava os parques arrelvados, com árvores frondosas e lagos brilhantes que os patos selvagens e os pombos sobrevoavam em bandos. Mas horrorizava-o a pobreza dos bairros da lata, onde as crianças deambulavam ao frio e com fome.
O viandante Amável entusiasmava-se com as sensações de liberdade e de aventura que a velocidade lhe proporcionava. Mas desanimava-o a poluição libertada pelos tubos de escape dos automóveis.
Também dos teatros, dos cinemas e dos cafés gostava o viandante Amável. Mas sempre o deixavam indisposto os ruídos ensurdecedores das buzinas, das motorizadas, e até dos aviões que rugiam em constantes aterragens e descolagens.
Como não existiam cidades sem altos edifícios em betão, sem bairros de lata, sem poluição e sem ruídos, andava o viandante Amável permanentemente de sobrolho franzido, de um lado para o outro, a refilar, a refilar.
É claro que no início o viandante Amável reclamava com razão. Temos de reconhecer que nenhum de nós gosta da escuridão, da pobreza ou da poluição. Contudo, este viandante exagerava, acabando por ganhar o hábito de tudo criticar, nada aceitar, ao ponto de os amigos lhe terem posto a alcunha de Amável Refilão.
Para piorar a situação, o Amável Refilão também fugia das praias, esbaforido, irado com os turistas que lhe ocupavam o espaço e importunavam o descanso.
E das conhecidas estâncias de montanha nem se fala, que o punham furioso as conversas dos jovens ansiosos por deslizar, em esquis, pelas encostas cobertas de neve.
- Que disparate! - gritava ele, com os cabelos no ar e a cara vermelhíssima. - Não há sítio onde se possa viver!
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Certo dia, andando o Amável Refilão nas suas viagens, parou numa aldeia pequena, de casas baixas, caiadas, e ruas com sardinheiras.
Chegando à estalagem onde decidira pernoitar, o Amável Refilão tocou a sineta, para chamar o estalajadeiro, e, perante este, pôs-se de imediato a reclamar, como era seu hábito:
- Diga-me! Que terra é esta, afinal? Não tem letreiro, não tem nada!
- Esta terra chama-se Aldelizes - respondeu o homem.
- Aldelizes? Mas que nome mais disparatado! Onde já se viu... - continuou o Amável Refilão a protestar, sem dar oportunidade ao outro para explicar a razão de tão insólito nome.
Na verdade, a aldeia denominava-se Aldelizes por ser a Aldeia das Pessoas Felizes.
Porém, o Amável Refilão não se calava:
- Então, na sua estalagem não tem um quarto cor-de-grão com uma janela ampla voltada para um riacho onde nadam trutas salmonadas?
- Não. Tenho um quarto branco, com vasos de túlipas nas janelas que abrem para uma planície verdejante - respondeu o estalajadeiro, calmamente.
- Também serve, também serve - resmungou o Amável Refilão, de testa franzida e ar zangado.
A rezingar, sempre a rezingar, subiu, atrás do seu anfitrião, as escadas de pinho luzidio que conduziam a um corredor comprido, ladeado por uma dezena de portas.
Quando o estalajadeiro abriu uma das portas, o corredor ficou completamente inundado de luz, como se um enorme candeeiro tivesse sido ligado. É que a porta dava acesso a um quarto extraordinariamente luminoso. Bem no centro do aposento, os raios de sol, que entravam pela janela aberta, reuniam-se alegremente e dançavam valsas ao sabor da aragem.
Por momentos, o viandante Amável teve mesmo que parar de resmungar, deslumbrado perante tão maravilhoso espectáculo.
Lentamente, pousou a mochila em cima da cama e aproximou-se da janela. Nunca ele avistara uma paisagem tão bela!
Até ao fundo, até ao horizonte, estendia-se uma magnífica planície, que era um campo liso, suave, sem montanhas nem declives, sem altos nem baixos - como um imenso campo de futebol, mas sem as marcações brancas e sem balizas, antes com vegetação abundante, plantas e árvores que formavam um mar verde e ondulante a brilhar ao sol.
Espantado, o viandante Amável abria a boca.
No entanto, recordando-se, subitamente, de que deveria sempre discutir, voltou-se para o dono da estalagem, franziu o sobrolho e, de nariz levantado, perguntou:
- Aqui não se almoça? Tenho de ficar com fome?
- O almoço está servido na cozinha - respondeu o estalajadeiro. E retirou-se.

O viandante Amável ficou só, no quarto, observando, agora com curiosidade, todo o aposento onde se encontrava. Como o estalajadeiro dissera, tinha paredes brancas e túlipas nas janelas. A cama, de madeira clara, erguia-se ao centro do quarto, ladeada por tapetes de linho cru, laboriosamente confeccionados ao tear. O armário, também de pinho, encostava-se a um canto, reflectindo a claridade do sol. A mesa de cabeceira e a cadeira, estáticas e silenciosas, quase ausentes, acomodavam-se em redor da cama.