quarta-feira, 25 de novembro de 2009

VOZES DOS ANIMAIS, poesia de Pedro Dinis


Palram pega e papagaio
E cacareja a galinha;
Os ternos pombos arrulham;
Geme a rola inocentinha.
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Muge a vaca; berra o touro;
Grasna a rã; ruge o leão;
O gato mia; uiva o lobo,
Também uiva e ladra o cão.
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Relincha o nobre cavalo;
Os elefantes dão urros;
A tímida ovelha bala;
Zurrar é próprio dos burros.
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Regouga a sagaz raposa
(Bichinho muito matreiro);
Nos ramos cantam as aves;
Mas pia o mocho agoureiro.
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Sabem as aves ligeiras
O canto seu variar;
Fazem às vezes gorjeios,
Às vezes põem-se a chilrar.
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O pardal, daninho aos campos,
Não aprendeu a cantar;
Como os ratos e as doninhas,
Apenas sabe chiar.
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O negro corvo crocita;
Zune o mosquito enfadonho;
A serpente no deserto
Solta assobio medonho.
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Chia a lebre; grasna o pato;
Ouvem-se os porcos grunhir;
Libando o suco das flores,
Costuma a abelha zumbir.
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Bramam os tigres, as onças;
Pia, pia, o pintainho;
Cucurica e canta o galo;
Late e gane o cachorrinho.
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A vitelinha dá berros;
O cordeirinho, balidos;
O macaquinho dá guinchos;
A criancinha, vagidos.
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A fala foi dada ao homem,
Rei dos outros animais,
Nos versos lidos acima,
Se encontram, em pobre rima,
As vozes dos principais.
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sábado, 21 de novembro de 2009

O AMÁVEL REFILÃO, história de Ilona Bastos



O AMÁVEL REFILÃO ou A ALDEIA DAS PESSOAS FELIZES


Era uma vez um viandante que se chamava Amável.

Um viandante é uma pessoa que coloca aos ombros a sua mochila carregada de coisas importantes - tais como a escova de dentes, o sabonete, o casaco e o chapéu - e vai viajar para terras distantes. Quero dizer, o viandante não passeia próximo da sua casa, da sua escola, ou do seu escritório. Ele toma um barco ou um comboio, por exemplo, e desce num local longínquo, que pode ser uma praia, um bosque ou uma cidade. Depois, não permanece aí durante muito tempo. Descansa um pouco, recolhe a bagagem, consulta o mapa, escolhe um destino e põe-se a caminho.

O viandante da nossa história, como todos os outros viandantes com quem se cruzava nas suas andanças, pouco parava. Contudo, destacava-se dos demais por duas características particulares: em primeiro lugar, por os pais, babosos do seu rebento, o haverem baptizado com o nome de Amável; em segundo lugar, por este nosso amável viandante ser, na verdade, um incorrigível refilão.

Estranha ironia, que um homem tão rezingão, tão pronto a encontrar defeitos em tudo e em todos, tivesse, afinal, o mais delicado dos nomes!

Sempre crítico, o viandante Amável saltitava, impaciente, de terra para terra, à procura do local ideal para viver. Porém, cada cidade que visitava lhe parecia mais desagradável do que a anterior, e a sua irritação não tinha limites.

É que ao viandante Amável agradavam as moradias de amplas janelas e belos jardins, mas desgostavam os altíssimos edifícios em betão que escureciam as ruas, tornando-as estreitas, húmidas e sombrias.

O viandante Amável apreciava os parques arrelvados, com árvores frondosas e lagos brilhantes que os patos selvagens e os pombos sobrevoavam em bandos. Mas horrorizava-o a pobreza dos bairros da lata, onde as crianças deambulavam ao frio e com fome.

O viandante Amável entusiasmava-se com as sensações de liberdade e de aventura que a velocidade lhe proporcionava. Mas desanimava-o a poluição libertada pelos tubos de escape dos automóveis.

Também dos teatros, dos cinemas e dos cafés gostava o viandante Amável. Mas sempre o deixavam indisposto os ruídos ensurdecedores das buzinas, das motorizadas, e até dos aviões que rugiam em constantes aterragens e descolagens.

Como não existiam cidades sem altos edifícios em betão, sem bairros de lata, sem poluição e sem ruídos, andava o viandante Amável permanentemente de sobrolho franzido, de um lado para o outro, a refilar, a refilar.

É claro que no início o viandante Amável reclamava com razão. Temos de reconhecer que nenhum de nós gosta da escuridão, da pobreza ou da poluição. Contudo, este viandante exagerava, acabando por ganhar o hábito de tudo criticar, nada aceitar, ao ponto de os amigos lhe terem posto a alcunha de Amável Refilão.

Para piorar a situação, o Amável Refilão também fugia das praias, esbaforido, irado com os turistas que lhe ocupavam o espaço e importunavam o descanso.

E das conhecidas estâncias de montanha nem se fala, que o punham furioso as conversas dos jovens ansiosos por deslizar, em esquis, pelas encostas cobertas de neve.

- Que disparate! - gritava ele, com os cabelos no ar e a cara vermelhíssima. - Não há sítio onde se possa viver!


* * * * * * * * * * * * * * *


Certo dia, andando o Amável Refilão nas suas viagens, parou numa aldeia pequena, de casas baixas, caiadas, e ruas com sardinheiras.

Chegando à estalagem onde decidira pernoitar, o Amável Refilão tocou a sineta, para chamar o estalajadeiro, e, perante este, pôs-se de imediato a reclamar, como era seu hábito:

- Diga-me! Que terra é esta, afinal? Não tem letreiro, não tem nada!

- Esta terra chama-se Aldelizes - respondeu o homem.

- Aldelizes? Mas que nome mais disparatado! Onde já se viu... - continuou o Amável Refilão a protestar, sem dar oportunidade ao outro para explicar a razão de tão insólito nome.

Na verdade, a aldeia denominava-se Aldelizes por ser a Aldeia das Pessoas Felizes.

Porém, o Amável Refilão não se calava:

- Então, na sua estalagem não tem um quarto cor-de-grão com uma janela ampla voltada para um riacho onde nadam trutas salmonadas?

- Não. Tenho um quarto branco, com vasos de túlipas nas janelas que abrem para uma planície verdejante - respondeu o estalajadeiro, calmamente.
- Também serve, também serve - resmungou o Amável Refilão, de testa franzida e ar zangado.

A rezingar, sempre a rezingar, subiu, atrás do seu anfitrião, as escadas de pinho luzidio que conduziam a um corredor comprido, ladeado por uma dezena de portas.

Quando o estalajadeiro abriu uma das portas, o corredor ficou completamente inundado de luz, como se um enorme candeeiro tivesse sido ligado. É que a porta dava acesso a um quarto extraordinariamente luminoso. Bem no centro do aposento, os raios de sol, que entravam pela janela aberta, reuniam-se alegremente e dançavam valsas ao sabor da aragem.

Por momentos, o viandante Amável teve mesmo que parar de resmungar, deslumbrado perante tão maravilhoso espectáculo.

Lentamente, pousou a mochila em cima da cama e aproximou-se da janela. Nunca ele avistara uma paisagem tão bela!

Até ao fundo, até ao horizonte, estendia-se uma magnífica planície, que era um campo liso, suave, sem montanhas nem declives, sem altos nem baixos - como um imenso campo de futebol, mas sem as marcações brancas e sem balizas, antes com vegetação abundante, plantas e árvores que formavam um mar verde e ondulante a brilhar ao sol.

Espantado, o viandante Amável abria a boca.

No entanto, recordando-se, subitamente, de que deveria sempre discutir, voltou-se para o dono da estalagem, franziu o sobrolho e, de nariz levantado, perguntou:

- Aqui não se almoça? Tenho de ficar com fome?

- O almoço está servido na cozinha - respondeu o estalajadeiro. E retirou-se.

O viandante Amável ficou só, no quarto, observando, agora com curiosidade, todo o aposento onde se encontrava. Como o estalajadeiro dissera, tinha paredes brancas e túlipas nas janelas. A cama, de madeira clara, erguia-se ao centro do quarto, ladeada por tapetes de linho cru, laboriosamente confeccionados ao tear. O armário, também de pinho, encostava-se a um canto, reflectindo a claridade do sol. A mesa de cabeceira e a cadeira, estáticas e silenciosas, quase ausentes, acomodavam-se em redor da cama.

Uma paz sem explicação invadiu o viandante Amável, que se lembrou de uma canção sobre flores e sobre andorinhas a voar.

Para se compreender o que ele sentia é preciso somar dois mais dois. Quero dizer, numa folha de caderno, é necessário pintar uma casa com uma chaminé inclinada no telhado. Ou melhor, escrever a palavra pai com todas as letras perfeitamente desenhadas - o "p", com o seu elegante mergulhar na linha de baixo, seguido do impulso que o une ao "a", redondo, sem ser demais, e o "i", leve como quem anda, naturalmente, ostentando a pinta que se não desequilibra.

Pois, tudo isto, que é tão simples e perfeito, sentia o viandante Amável, quase que sonhando.

Sem saber como, apenas com a intuição de que deveria alimentar-se, o viandante Amável deu alguns passos até à porta, rodou a maçaneta e saíu do quarto. Depois, fechou a porta e, repentinamente acordado, desceu a escada e dirigiu-se à cozinha, para almoçar.

Bom, já todos nós percebemos que o quarto do Amável Refilão era mágico. Só ele é que não sabia. Mas a verdade é que, por qualquer razão misteriosa, enquanto se encontrava dentro do quarto, o viandante Amável não tinha vontade de refilar. E isso era estranho - estranhíssimo! -, pois, como já expliquei, o viandante Amável passava a vida, toda a vida, mesmo, a reclamar.

Ora se queixava da comida, porque tinha pimenta a mais, ora das crianças, porque berravam e pulavam sem descanso. Ora se lastimava do sol, porque lhe queimava os olhos, ora da neve, porque lhe gelava os ossos...

Não havia dia, hora ou minuto em que o Amável Refilão não protestasse.

Ao almoço, portanto, o Amável Refilão gritou: que a carne estava mal passada e o doce não tinha açúcar. Na rua, o Amável Refilão vociferou: que as estradas eram duras e os caminhos pedregosos. No campo, o Amável Refilão lastimou-se: que as árvores eram altas e as flores demasiado baixas. De regresso à estalagem, o Amável Refilão lamuriou-se: que os pés lhe doíam e o cabelo se despenteara.

Porém, quando entrou no quarto, novamente o viandante Amável ficou fascinado. O Sol punha-se, no horizonte. Isto é, aquela imensa estrela que é o Sol, qual bola alaranjada, ia desaparecendo no extremo último dos campos, banhando-se em nuvens de múltiplas nuances e de aromas silvestres. E o viandante Amável não resmungou.

No dia seguinte, depois de passada a primeira noite no quarto mágico, o viandante Amável só com dificuldade conseguia encontrar defeitos para apontar. De quando em quando, se acaso se lembrava, lá fazia um esforço e uma crítica, mas sem grande convicção.

Pela segunda vez, pernoitou o viandante Amável no quarto mágico, e tais foram os sonhos, plenos de cores suaves e doces sensações, que ele acordou com uma disposição magnífica. Todo o dia, passou-o nos campos, ou junto ao riacho onde, afinal, lá encontrou, nadando com enérgica alegria, as trutas salmonadas.

Refilar? Só uma vez o viandante Amável o fez - e por dever, temente de perder a prática e o jeito.
O viandante Amável ficou pela terceira noite no quarto mágico. O odor dos campos e dos pomares povoou-lhe os sonhos.

Desperto, pela manhã, com o cantar dos pássaros, desceu à rua e visitou a aldeia: as suas casas brancas e jardins floridos; a escola, onde as crianças aprendiam as letras e os números; o hospital, onde os médicos receitavam tratamentos e curavam os doentes; o edifício dos bombeiros, onde estes limpavam os carros vermelhos, as mangueiras, e poliam os dourados; a igreja, emanando esperança, em mármore rosa, com imagens suaves esculpidas na pedra.

Durante todo o dia o viandante Amável não refilou, e a cada passo estampava-se, no seu rosto, um sorriso de felicidade.
Tomou, então, uma decisão importante: passaria o resto da sua vida naquela aldeia.

Comprou um postal que retratava a planície e o resplandecer da sua folhagem. Endereçou-o à sua cidade de origem e escreveu: "Finalmente, sou feliz."

À noite, de regresso à estalagem, disse ao estalajadeiro:

- Já sei a razão por que a aldeia se chama Aldelizes.

E recolheu ao quarto.

A partir daí, o homem da nossa história deixou de ser viandante, pois passou a viver, a trabalhar, a morar na aldeia das pessoas felizes. Aí casou e tem agora a sua família.

Aos amigos que o visitam, leva-os a conhecer a estalagem, a planície, as ruas e o riacho. E cada um deles aprende e transporta, de regresso à sua cidade, um pouco do segredo da felicidade. De Aldelizes recebem um vaso com sardinheiras que, colocadas em floreiras, se espraiam pelas varandas e restituem às ruas a sua cor e alegria. Transportam ideias bem simples - qual ovo de Colombo! - que ajudam a resolver o problema da tristeza, da pobreza, da poluição. Recebem bolbos de túlipa, que o homem da nossa história, entusiasmado, não se cansa de elogiar. E os amigos sorriem quando o vêem assim, de olhar brilhante, feliz!

De Amável Refilão que era, passou a ser apenas Amável. E é assim que todos o conhecem em Aldelizes.



segunda-feira, 9 de novembro de 2009

SERÃO, poesia de Maria da Fonseca




Sou parceira do meu neto,
Que gosta de jogar cartas.
-Tiago, toma cuidado,
Não te ponhas com bravatas!

- Mas não temos pano verde,
Nem a mesa é quadrada.
Porém há muita alegria,
Lá vai mais uma jogada!

No meio da animação,
A avó está, é, com azar.
Não adianta, portanto,
Com o Tiago ralhar!

A mãe vai jogar a carta.
Com seu sorriso maroto,
O filho corta-lhe a vaza,
Mas não cai em saco roto!

O pai, parceiro da mãe,
Não deixa passar o ás,
E é ver a reacção
Do nosso amado rapaz!

Nesta noite agradável,
Os pais estão a ganhar.
Mas logo ali combinamos
Amanhã nos desforrar!

E a família se despede,
- Uma noite bem feliz -.
O meu neto sai alegre
A levantar o nariz!
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