quarta-feira, 25 de novembro de 2009

VOZES DOS ANIMAIS, poesia de Pedro Dinis


Palram pega e papagaio
E cacareja a galinha;
Os ternos pombos arrulham;
Geme a rola inocentinha.
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Muge a vaca; berra o touro;
Grasna a rã; ruge o leão;
O gato mia; uiva o lobo,
Também uiva e ladra o cão.
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Relincha o nobre cavalo;
Os elefantes dão urros;
A tímida ovelha bala;
Zurrar é próprio dos burros.
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Regouga a sagaz raposa
(Bichinho muito matreiro);
Nos ramos cantam as aves;
Mas pia o mocho agoureiro.
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Sabem as aves ligeiras
O canto seu variar;
Fazem às vezes gorjeios,
Às vezes põem-se a chilrar.
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O pardal, daninho aos campos,
Não aprendeu a cantar;
Como os ratos e as doninhas,
Apenas sabe chiar.
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O negro corvo crocita;
Zune o mosquito enfadonho;
A serpente no deserto
Solta assobio medonho.
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Chia a lebre; grasna o pato;
Ouvem-se os porcos grunhir;
Libando o suco das flores,
Costuma a abelha zumbir.
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Bramam os tigres, as onças;
Pia, pia, o pintainho;
Cucurica e canta o galo;
Late e gane o cachorrinho.
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A vitelinha dá berros;
O cordeirinho, balidos;
O macaquinho dá guinchos;
A criancinha, vagidos.
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A fala foi dada ao homem,
Rei dos outros animais,
Nos versos lidos acima,
Se encontram, em pobre rima,
As vozes dos principais.
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sábado, 21 de novembro de 2009

O AMÁVEL REFILÃO, história de Ilona Bastos



O AMÁVEL REFILÃO ou A ALDEIA DAS PESSOAS FELIZES


Era uma vez um viandante que se chamava Amável.

Um viandante é uma pessoa que coloca aos ombros a sua mochila carregada de coisas importantes - tais como a escova de dentes, o sabonete, o casaco e o chapéu - e vai viajar para terras distantes. Quero dizer, o viandante não passeia próximo da sua casa, da sua escola, ou do seu escritório. Ele toma um barco ou um comboio, por exemplo, e desce num local longínquo, que pode ser uma praia, um bosque ou uma cidade. Depois, não permanece aí durante muito tempo. Descansa um pouco, recolhe a bagagem, consulta o mapa, escolhe um destino e põe-se a caminho.

O viandante da nossa história, como todos os outros viandantes com quem se cruzava nas suas andanças, pouco parava. Contudo, destacava-se dos demais por duas características particulares: em primeiro lugar, por os pais, babosos do seu rebento, o haverem baptizado com o nome de Amável; em segundo lugar, por este nosso amável viandante ser, na verdade, um incorrigível refilão.

Estranha ironia, que um homem tão rezingão, tão pronto a encontrar defeitos em tudo e em todos, tivesse, afinal, o mais delicado dos nomes!

Sempre crítico, o viandante Amável saltitava, impaciente, de terra para terra, à procura do local ideal para viver. Porém, cada cidade que visitava lhe parecia mais desagradável do que a anterior, e a sua irritação não tinha limites.

É que ao viandante Amável agradavam as moradias de amplas janelas e belos jardins, mas desgostavam os altíssimos edifícios em betão que escureciam as ruas, tornando-as estreitas, húmidas e sombrias.

O viandante Amável apreciava os parques arrelvados, com árvores frondosas e lagos brilhantes que os patos selvagens e os pombos sobrevoavam em bandos. Mas horrorizava-o a pobreza dos bairros da lata, onde as crianças deambulavam ao frio e com fome.

O viandante Amável entusiasmava-se com as sensações de liberdade e de aventura que a velocidade lhe proporcionava. Mas desanimava-o a poluição libertada pelos tubos de escape dos automóveis.

Também dos teatros, dos cinemas e dos cafés gostava o viandante Amável. Mas sempre o deixavam indisposto os ruídos ensurdecedores das buzinas, das motorizadas, e até dos aviões que rugiam em constantes aterragens e descolagens.

Como não existiam cidades sem altos edifícios em betão, sem bairros de lata, sem poluição e sem ruídos, andava o viandante Amável permanentemente de sobrolho franzido, de um lado para o outro, a refilar, a refilar.

É claro que no início o viandante Amável reclamava com razão. Temos de reconhecer que nenhum de nós gosta da escuridão, da pobreza ou da poluição. Contudo, este viandante exagerava, acabando por ganhar o hábito de tudo criticar, nada aceitar, ao ponto de os amigos lhe terem posto a alcunha de Amável Refilão.

Para piorar a situação, o Amável Refilão também fugia das praias, esbaforido, irado com os turistas que lhe ocupavam o espaço e importunavam o descanso.

E das conhecidas estâncias de montanha nem se fala, que o punham furioso as conversas dos jovens ansiosos por deslizar, em esquis, pelas encostas cobertas de neve.

- Que disparate! - gritava ele, com os cabelos no ar e a cara vermelhíssima. - Não há sítio onde se possa viver!


* * * * * * * * * * * * * * *


Certo dia, andando o Amável Refilão nas suas viagens, parou numa aldeia pequena, de casas baixas, caiadas, e ruas com sardinheiras.

Chegando à estalagem onde decidira pernoitar, o Amável Refilão tocou a sineta, para chamar o estalajadeiro, e, perante este, pôs-se de imediato a reclamar, como era seu hábito:

- Diga-me! Que terra é esta, afinal? Não tem letreiro, não tem nada!

- Esta terra chama-se Aldelizes - respondeu o homem.

- Aldelizes? Mas que nome mais disparatado! Onde já se viu... - continuou o Amável Refilão a protestar, sem dar oportunidade ao outro para explicar a razão de tão insólito nome.

Na verdade, a aldeia denominava-se Aldelizes por ser a Aldeia das Pessoas Felizes.

Porém, o Amável Refilão não se calava:

- Então, na sua estalagem não tem um quarto cor-de-grão com uma janela ampla voltada para um riacho onde nadam trutas salmonadas?

- Não. Tenho um quarto branco, com vasos de túlipas nas janelas que abrem para uma planície verdejante - respondeu o estalajadeiro, calmamente.
- Também serve, também serve - resmungou o Amável Refilão, de testa franzida e ar zangado.

A rezingar, sempre a rezingar, subiu, atrás do seu anfitrião, as escadas de pinho luzidio que conduziam a um corredor comprido, ladeado por uma dezena de portas.

Quando o estalajadeiro abriu uma das portas, o corredor ficou completamente inundado de luz, como se um enorme candeeiro tivesse sido ligado. É que a porta dava acesso a um quarto extraordinariamente luminoso. Bem no centro do aposento, os raios de sol, que entravam pela janela aberta, reuniam-se alegremente e dançavam valsas ao sabor da aragem.

Por momentos, o viandante Amável teve mesmo que parar de resmungar, deslumbrado perante tão maravilhoso espectáculo.

Lentamente, pousou a mochila em cima da cama e aproximou-se da janela. Nunca ele avistara uma paisagem tão bela!

Até ao fundo, até ao horizonte, estendia-se uma magnífica planície, que era um campo liso, suave, sem montanhas nem declives, sem altos nem baixos - como um imenso campo de futebol, mas sem as marcações brancas e sem balizas, antes com vegetação abundante, plantas e árvores que formavam um mar verde e ondulante a brilhar ao sol.

Espantado, o viandante Amável abria a boca.

No entanto, recordando-se, subitamente, de que deveria sempre discutir, voltou-se para o dono da estalagem, franziu o sobrolho e, de nariz levantado, perguntou:

- Aqui não se almoça? Tenho de ficar com fome?

- O almoço está servido na cozinha - respondeu o estalajadeiro. E retirou-se.

O viandante Amável ficou só, no quarto, observando, agora com curiosidade, todo o aposento onde se encontrava. Como o estalajadeiro dissera, tinha paredes brancas e túlipas nas janelas. A cama, de madeira clara, erguia-se ao centro do quarto, ladeada por tapetes de linho cru, laboriosamente confeccionados ao tear. O armário, também de pinho, encostava-se a um canto, reflectindo a claridade do sol. A mesa de cabeceira e a cadeira, estáticas e silenciosas, quase ausentes, acomodavam-se em redor da cama.

Uma paz sem explicação invadiu o viandante Amável, que se lembrou de uma canção sobre flores e sobre andorinhas a voar.

Para se compreender o que ele sentia é preciso somar dois mais dois. Quero dizer, numa folha de caderno, é necessário pintar uma casa com uma chaminé inclinada no telhado. Ou melhor, escrever a palavra pai com todas as letras perfeitamente desenhadas - o "p", com o seu elegante mergulhar na linha de baixo, seguido do impulso que o une ao "a", redondo, sem ser demais, e o "i", leve como quem anda, naturalmente, ostentando a pinta que se não desequilibra.

Pois, tudo isto, que é tão simples e perfeito, sentia o viandante Amável, quase que sonhando.

Sem saber como, apenas com a intuição de que deveria alimentar-se, o viandante Amável deu alguns passos até à porta, rodou a maçaneta e saíu do quarto. Depois, fechou a porta e, repentinamente acordado, desceu a escada e dirigiu-se à cozinha, para almoçar.

Bom, já todos nós percebemos que o quarto do Amável Refilão era mágico. Só ele é que não sabia. Mas a verdade é que, por qualquer razão misteriosa, enquanto se encontrava dentro do quarto, o viandante Amável não tinha vontade de refilar. E isso era estranho - estranhíssimo! -, pois, como já expliquei, o viandante Amável passava a vida, toda a vida, mesmo, a reclamar.

Ora se queixava da comida, porque tinha pimenta a mais, ora das crianças, porque berravam e pulavam sem descanso. Ora se lastimava do sol, porque lhe queimava os olhos, ora da neve, porque lhe gelava os ossos...

Não havia dia, hora ou minuto em que o Amável Refilão não protestasse.

Ao almoço, portanto, o Amável Refilão gritou: que a carne estava mal passada e o doce não tinha açúcar. Na rua, o Amável Refilão vociferou: que as estradas eram duras e os caminhos pedregosos. No campo, o Amável Refilão lastimou-se: que as árvores eram altas e as flores demasiado baixas. De regresso à estalagem, o Amável Refilão lamuriou-se: que os pés lhe doíam e o cabelo se despenteara.

Porém, quando entrou no quarto, novamente o viandante Amável ficou fascinado. O Sol punha-se, no horizonte. Isto é, aquela imensa estrela que é o Sol, qual bola alaranjada, ia desaparecendo no extremo último dos campos, banhando-se em nuvens de múltiplas nuances e de aromas silvestres. E o viandante Amável não resmungou.

No dia seguinte, depois de passada a primeira noite no quarto mágico, o viandante Amável só com dificuldade conseguia encontrar defeitos para apontar. De quando em quando, se acaso se lembrava, lá fazia um esforço e uma crítica, mas sem grande convicção.

Pela segunda vez, pernoitou o viandante Amável no quarto mágico, e tais foram os sonhos, plenos de cores suaves e doces sensações, que ele acordou com uma disposição magnífica. Todo o dia, passou-o nos campos, ou junto ao riacho onde, afinal, lá encontrou, nadando com enérgica alegria, as trutas salmonadas.

Refilar? Só uma vez o viandante Amável o fez - e por dever, temente de perder a prática e o jeito.
O viandante Amável ficou pela terceira noite no quarto mágico. O odor dos campos e dos pomares povoou-lhe os sonhos.

Desperto, pela manhã, com o cantar dos pássaros, desceu à rua e visitou a aldeia: as suas casas brancas e jardins floridos; a escola, onde as crianças aprendiam as letras e os números; o hospital, onde os médicos receitavam tratamentos e curavam os doentes; o edifício dos bombeiros, onde estes limpavam os carros vermelhos, as mangueiras, e poliam os dourados; a igreja, emanando esperança, em mármore rosa, com imagens suaves esculpidas na pedra.

Durante todo o dia o viandante Amável não refilou, e a cada passo estampava-se, no seu rosto, um sorriso de felicidade.
Tomou, então, uma decisão importante: passaria o resto da sua vida naquela aldeia.

Comprou um postal que retratava a planície e o resplandecer da sua folhagem. Endereçou-o à sua cidade de origem e escreveu: "Finalmente, sou feliz."

À noite, de regresso à estalagem, disse ao estalajadeiro:

- Já sei a razão por que a aldeia se chama Aldelizes.

E recolheu ao quarto.

A partir daí, o homem da nossa história deixou de ser viandante, pois passou a viver, a trabalhar, a morar na aldeia das pessoas felizes. Aí casou e tem agora a sua família.

Aos amigos que o visitam, leva-os a conhecer a estalagem, a planície, as ruas e o riacho. E cada um deles aprende e transporta, de regresso à sua cidade, um pouco do segredo da felicidade. De Aldelizes recebem um vaso com sardinheiras que, colocadas em floreiras, se espraiam pelas varandas e restituem às ruas a sua cor e alegria. Transportam ideias bem simples - qual ovo de Colombo! - que ajudam a resolver o problema da tristeza, da pobreza, da poluição. Recebem bolbos de túlipa, que o homem da nossa história, entusiasmado, não se cansa de elogiar. E os amigos sorriem quando o vêem assim, de olhar brilhante, feliz!

De Amável Refilão que era, passou a ser apenas Amável. E é assim que todos o conhecem em Aldelizes.



segunda-feira, 9 de novembro de 2009

SERÃO, poesia de Maria da Fonseca




Sou parceira do meu neto,
Que gosta de jogar cartas.
-Tiago, toma cuidado,
Não te ponhas com bravatas!

- Mas não temos pano verde,
Nem a mesa é quadrada.
Porém há muita alegria,
Lá vai mais uma jogada!

No meio da animação,
A avó está, é, com azar.
Não adianta, portanto,
Com o Tiago ralhar!

A mãe vai jogar a carta.
Com seu sorriso maroto,
O filho corta-lhe a vaza,
Mas não cai em saco roto!

O pai, parceiro da mãe,
Não deixa passar o ás,
E é ver a reacção
Do nosso amado rapaz!

Nesta noite agradável,
Os pais estão a ganhar.
Mas logo ali combinamos
Amanhã nos desforrar!

E a família se despede,
- Uma noite bem feliz -.
O meu neto sai alegre
A levantar o nariz!
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domingo, 18 de outubro de 2009

A FAMÍLIA TECO-TECO, história da Avómi

Pintura a óleo de Jean Bradbury, da série Weasels Dance, Rabbits Dream
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Ia eu muito contente apanhando pedrinha aqui, florinha ali, olhando as árvores, sorrindo às ervinhas, quando ouvi uma vozinha muito fininha que pedia socorro. Corri para o local donde vinha a voz e deparei-me com um coelhinho que chorava.

- Que te aconteceu, coelhinho?- perguntei-lhe.

- Tive um acidente - respondeu o coelhinho - Parti uma patinha quando fugia dum caçador maroto que queria matar-me, para fazer uma boa almoçarada. O mais grave é que, depois de tanto fugir, não sei onde estou, e não consigo orientar-me para voltar para casa. Os meus pais e irmãos devem estar desesperados.

- Deixa-me ver a tua patinha!... Ah, isto está feio! De certo terás que ir ao veterinário para te tratar e é melhor fazê-lo quanto antes, porque se o não fizeres, podes ficar com a patinha aleijada.

- Terei que ir ao veterinário?! O que é isso?

- O veterinário é um Senhor que trata os animais; é o médico dos animais.

- Ah, nunca tinha ouvido falar!

- Mas o que eu mais queria, era encontrar a minha casa e a minha família. Longe dos meus familiares, sinto-me muito triste.

- Vais dizer-me onde vivem os teus pais e depois de teres a patinha tratada pelo veterinário, levar-te-ei a casa. - disse eu.

- O meu pai é o Senhor Teco-Teco e a minha mãe a Senhora Teco-Teco. A nossa casa é na quinta do Senhor Conde de... Ai que me esqueci do nome do Senhor Conde!... - disse o coelhinho.

- E como se chama a quinta? Se me disseres o nome da quinta e onde fica...

- A quinta fica num Monte e chama-se Quinta da Corticeira.

A nossa toca é muito espaçosa e gostamos muito de lá viver, porque temos sempre ervinhas frescas e aguinha muito limpa, sem precisarmos de ir para longe da toca. A água corre num riacho ali ao pé e faz um barulho tão bonito, que até parece que canta.

- Não te preocupes, que não será difícil encontrarmos os teus pais, pois pelas indicações que me dás, havemos de lá ir ter.

- Que bom! Estou tão desejoso de chegar a minha casa e tão preocupado com os meus pais! Eles devem estar aflitíssimos e muito tristes.

- Então vamos lá visitar o Senhor Dr. Pereira que é um veterinário meu amigo, e ele tratar-te-á cuidadosamente. A tua patinha ficará boa num instante. Vem cá para o meu colo, não quero que te esforces a andar. A tua patinha não deve estar partida, mas sim muito magoada, pois se estivesse partida não poderias andar.

Fomos ao consultório do Dr. Pereira que vive numa aldeia ali perto e ele observou logo a patinha do coelhinho Teco-Teco.

- Isto não é nada de grave. A tua patinha está apenas magoada. Vou pôr-te uma pomadinha e daqui a pouco estarás pronto para uma corrida.

- Obrigado, Senhor Dr. - disse o coelhinho - O Senhor é muito simpático e bom. Se soubesse o susto que apanhei, quando vi aquele caçador a apontar-me a arma!... Nunca tinha corrido tanto na minha vida. A minha sorte foi ter-me magoado quando já estava bastante longe dele, senão!...
Esta amiga socorreu-me e trouxe-me aqui para o Senhor Dr. tratar a minha patinha, pois se assim não fosse estaria ainda no meio do mato, perdido e cheio de dores.

- Onde moras? - perguntou o veterinário.

- Moro na Quinta da Corticeira.

- Essa quinta é muito perto daqui! Estás a ver aquele Monte? É ali a Quinta da Corticeira. Como estás muito cansado e a nossa amiga também deve estar, levá-los-ei no meu carro, para evitar que subam o monte a pé.

- Obrigado, Senhor Dr. Pereira! Estou tão contente por o ter conhecido!
Quando chegar a casa vou dizer aos meus pais que o Senhor é o melhor médico do mundo e, tenho a certeza que a partir de agora, a Família Teco-Teco há-de vir ao seu consultório sempre que houver qualquer problema de saúde.

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segunda-feira, 12 de outubro de 2009

PEDRA FILOSOFAL, poesia de António Gedeão

Fotografia da Terra - NASA



Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.


Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
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sábado, 10 de outubro de 2009

A MENINA ALFACINHA, história de Ilona Bastos

Naquele dia, a professora Dina entrou na sala, pousou a pasta em cima da secretária e voltou-se para os alunos com um lindo sorriso:
- Hoje vão ter uma nova colega!

Os meninos agitaram-se nas cadeiras, e o Francisco, o mais atrevido, perguntou:
- Como se chama a nova aluna?

A professora Dina procurou nos papéis, guardados num dossier, hesitou e voltou a sorrir:

- Bom... chama-se Almerinda Etelvina Engrácia Pancrácia da Silva... Mas os amigos tratam-na por Menina Alfacinha.

Toda a turma tornou a dançar sobre os assentos.

- Menina Alfacinha? Mas que nome mais engraçado!

- Já sei porque se chama Alfacinha! - gritou o Pedro, saltando. - É Alfacinha porque nasceu em Lisboa!

A professora Dina abanou a cabeça.

- Não! - disse ela. - A Menina Alfacinha não nasceu em Lisboa, nasceu em Sintra.

- Ah! - exclamou o Manuel. - A menina chama-se Alfacinha porque o seu clube de futebol preferido é o Sporting!

A professora Dina tornou a negar.

- Não! Na verdade, a Menina Alfacinha gosta muito de verde e até aprecia futebol, mas ainda não escolheu pertencer a nenhum clube em especial.

- Então a menina tem esse nome porque é ecologista - afirmou a Mariana, muito séria. - Gosta da Natureza e quer defendê-la.

A professora Dina, mais uma vez, largou a sorrir.

- Com certeza que a Menina Alfacinha gosta da Natureza e quer defendê-la, aliás como todos nós aqui na sala. Mas não é por isso que lhe chamam Menina Alfacinha.

- Diga, diga, professora! - pediram os meninos, em coro. - Porque é que a nova aluna se chama Alfacinha?

A professora Dina, mais do que sorrir, soltou uma verdadeira gargalhada.
- É que a Menina Alfacinha tem o cabelo verde!

Os meninos riram também, incrédulos.

- Ninguém tem o cabelo verde - disse o Rui, agarrado à barriga de tanto rir.

- Tem, tem! - respondeu a professora Dina. - Tem a Menina Alfacinha. Passou debaixo de uma escada, e... vejam lá que grande azar!... Levou com um balde de tinta verde na cabeça!

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domingo, 9 de agosto de 2009

AS ROLINHAS, poesia de Maria da Fonseca

Fotografia de edthomas, em Digiforum
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As rolinhas, que eu conheço,
Têm penas matizadas
De cinza, branco e castanho.
Têm asas bem lançadas

E as cabecinhas redondas.
Muito vivos os olhitos
Vêem tudo o que se passa.
Brilhantes são seus biquitos.

E tendo em conta o seu nome,
Arrulham com alegria,
Desde que vêm o Sol
Até terminar o dia.

A rola chama-se Juju,
O menino é o Tiago.
A este lindo casal
Ele dá o seu afago.

A Primavera chegou,
A Juju pôs um ovinho.
E as duas meigas rolinhas
Nunca deixaram o ninho.

Ficava o rolo de noite
Sobre o ovinho sentado.
De dia sentava a rola
Sobre o filho desejado.

Um dia estalou o ovo,
Logo seus pais acorreram
A ajudar a avezita,
Que depressa esconderam.

- Já têm o seu bebé!
Grita o Tiago contente,
Desejoso de espreitar
A rolinha mais recente.

Vê-se através da penugem
O seu corpinho rosado,
Sua cabeça é redonda
E o olhinho bem fechado.

Mas o casal de rolinhas
Não deixa seu filho ver,
Muito bem aconchegado
Para não arrefecer.

Com o bico o alimentam,
Dão-lhe da sua comida.
É preciso que ele cresça
E se prepare prà vida.

O Tiago admirado,
Nas rolinhas reconhece
O grande apego dos pais,
Que seu filho lhes merece.

No seu pensar de criança,
Está bem certo o petiz,
- Os paizinhos dão o apoio
Prò filho crescer feliz.

No mundo em que nós vivemos,
Esta é uma lei natural.
O amor como o dos pais,
Não há outro amor igual!
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sexta-feira, 7 de agosto de 2009

domingo, 2 de agosto de 2009

A ESPERTEZA DO RATINHO JOÃO, história da Avómi


O Ratinho João tinha convocado os irmãos para uma reunião importante. À hora marcada reuniram-se à volta de uma mesa muito comprida, numa furna bem escondida.

- Hoje vou comer um gelado que me vai saber tão bem, que vocês não imaginam. - Disse o Ratinho João aos seus irmãos Francisco, Manuel, Jacinto, etc., etc... (eram tantos!) Vou comer um gelado com uma bolachinha, que me hei-de consolar. Querem ir comigo? Convoquei-vos para esta reunião, para vos fazer a proposta de me acompanharem. Não podia fazê-lo noutro local, não fosse alguém ouvir e estragar os meus planos.

Os irmãos do Ratinho João olharam uns para os outros e um deles perguntou:

- Achas que não daremos nas vistas?

- Não! - Disse o Ratinho João - Não quero dizer, que vamos todos ao mesmo tempo, pois poderíamos ser apanhados, mas iremos dois de cada vez. Teremos que ir pé-ante-pé, para que ninguém nos veja nem nos oiça. É que as pessoas não compreendem, que nós temos tanta necessidade de nos alimentarmos e de comermos coisinhas doces como elas, e podem armar-nos uma ratoeira!

- Tiveste uma boa ideia de irmos dois de cada vez. - Disse o Jacinto.

- Então vamos lá, Jacinto! - Disse o João - Depois irão outros dois.

O João e o Jacinto puseram-se a caminho da geladaria. Chegados lá, encostaram-se muito bem à parede e ninguém os viu entrar. Abriram o frigorífico que estava ao fundo da cozinha, tiraram um gelado para cada um. Eram duas taças enormes, muito bem ornamentadas com chantilly, uma bolachinha e, ainda, para completar o ornamento, um guarda-sol que abria e fechava.

Os ratinhos acharam tanta piada ao guarda-sol, que se distraíram a brincar com ele; abriram-no e fecharam-no, voltaram a abrir e a fechar... Tantas vezes isto aconteceu e demoraram tanto tempo, que, quando resolveram começar a comer o gelado, já ele estava totalmente derretido. Muito admirados, olharam um para o outro e o Ratinho João disse:

- Não te preocupes, Jacinto, que há muitos gelados no frigorífico. Vamos buscar outros e até ficaremos com mais um guarda-sol para cada um.

-Está bem, vamos lá! - Disse o Jacinto - Mas cuidado, que tu às vezes és distraído e podes ser apanhado por aquelas meninas que estão ali fora, ao balcão, a atender as pessoas.

- Não te preocupes comigo e tem cuidado também, porque não és menos distraído que eu. - Disse o João - Temos que fazer tudo com cautela, para mais tarde os nossos irmãos poderem vir também provar estes maravilhosos gelados.

Dirigiram-se ao frigorífico, tiraram uma taça de gelado para cada um, comeram, comeram... e ficaram com umas barrigas enormes, porque um gelado daqueles era demasiado grande para uns ratinhos tão pequeninos.

Mal se podendo arrastar, dirigiram-se a casa, para que os irmãos fossem também saborear aquela delícia. Porém, estavam tão gordos e tão diferentes, que os irmãos ao verem-nos com aquelas barrigas enormes e sem a ligeireza habitual, ficaram preocupados e com medo que o Ratinho João e o Ratinho Jacinto tivessem adoecido gravemente.

- Agora é a vossa vez! - Disse o Ratinho João - Quem quer ir? Não tenham receio, que é muito fácil. As meninas que estão na geladaria têm muitos clientes para atender e nem se lembram de olhar para o chão, por isso não há que ter receio.

Os ratinhos olharam uns para os outros, mas não se decidiam e o Ratinho Jacinto disse:

Vão lá! Se perdem muito tempo, não poderão ir todos, porque, entretanto, anoitecerá e fecharão as portas.

O Ratinho Manuel, perguntou ao Ratinho Francisco:

- Queres ir? Anda daí!

- Vai com o António. Eu não tenho apetite e irei noutra ocasião. - Disse o Francisco.

Estavam todos com tanto medo de ficarem gordos e indolentes como os irmãos, que não queriam atrever-se, até porque, gulosos como eram, sabiam muito bem que se fossem não se contentariam com um gelado apenas. Para além disso, um Ratinho amigo havia-lhes contado que, por pouco não tinha sido apanhado por uma ratoeira, uma vez que foi à mesma geladaria com o propósito de comer um gelado.

- Eu não vou. - Disse o António.

- É melhor não irmos! - Disse o Francisco - Além do risco de podermos ser apanhados, ainda poderemos ficar, como os nossos irmãos, gordos e indolentes. Eu desisto.

- Também acho! - Disse o Elias - Ficamos por aqui. Até porque os doces em excesso fazem muito mal à saúde.

- Tens razão! - Exclamaram todos. Vale mais prevenir, que remediar.

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quinta-feira, 30 de julho de 2009

A BORBOLETA, poesia de Olavo Bilac

Fotografia de Adriano Nobre
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Trazendo uma borboleta,
Volta Alfredo para casa.
Como é linda! é toda preta,
Com listas douradas na asa.
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Tonta, nas mãos da criança,
Batendo as asas, num susto,
Quer fugir, porfia, cansa,
E treme, e respira a custo.
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Contente, o menino grita:
"É a primeira que apanho,
"Mamãe! vê como é bonita!
"Que cores e que tamanho!
.
"Como voava no mato!
"Vou sem demora pregá-la
"Por baixo do meu retrato,
"Numa parede da sala".
.
Mas a mamãe, com carinho,
Lhe diz: "Que mal te fazia,
"Meu filho, esse animalzinho,
"Que livre e alegre vivia?
.
"Solta essa pobre coitada!
"Larga-lhe as asas, Alfredo!
"Vê como treme assustada . . .
"Vê como treme de medo . . .
.
"Para sem pena espetá-la
"Numa parede, menino,
"É necessário matá-la:
"Queres ser um assassino?"
.
Pensa Alfredo . . . E, de repente,
Solta a borboleta . . . E ela
Abre as asas livremente,
E foge pela janela.
.
"Assim, meu filho! perdeste
"A borboleta dourada,
"Porém na estima cresceste
"De tua mãe adorada . . .
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"Que cada um cumpra sua sorte
"Das mãos de Deus recebida:
"Pois só pode dar a Morte
"Aquele que dá a Vida!"
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terça-feira, 28 de julho de 2009

VOANDO COM O VENTO, história de Ilona Bastos

I
Era uma vez uma pequena pastora chamada Rosa Branca, que vivia com os pais junto a uma alta montanha.
Desde criança, os pais haviam encarregado Rosa Branca de subir ao monte todos os dias, para guardar o rebanho. E a pequenita, vestindo a sua capa de lã, trepava com esforço, encosta acima, até pastagens verdes e tenras.
Ora acontece que certo dia, achando-se Rosa Branca no alto da montanha, entretida a atirar pedras ao longe, para o cão as apanhar e trazer de volta, ouviu um som muito fino.
Olhou em redor, para baixo e para cima, mas não conseguiu descobrir o que produzira tal ruído, pelo que lhe pareceu que o barulho era causado pelo ar. Era o ar que falava, ou melhor, o ar em movimento: o vento.
O vento que, no céu muito azul, empurrava as nuvens, brancas e luminosas, a grande velocidade, como um cajado de pastor guiando o seu rebanho para o norte. O vento que, ao ouvido de Rosa Branca, murmurava, sussurrava, brincando-lhe com os braços e as pernas, puxando-lhe o cabelo, fazendo-lhe festas na cara.
A menina sorriu, com alegria. E logo, numa troca de sons e aragens, o vento e a pequena pastora tornaram-se amigos, de tal modo que, nesse fim de tarde, de regresso a casa, montanha abaixo, a menina sentiu que o vento a acompanhava e ajudava na descida.
No dia seguinte, também para a subida - esta mais difícil - o vento deu o seu auxílio, empurrando energicamente Rosa Branca, de tal forma que lhe bastou dar grandes passadas pelo ar, que do resto a aragem se encarregou. E em três tempos chegou às pastagens do alto.
Como se entendiam, que ideias ou brisas trocavam, não é sabido, apenas que desde então Rosa Branca deixou de se fazer transportar de carroça, carro ou camioneta, pois que voava com o vento: se queria subir, de imediato o ar soprava para cima; se desejava descer, logo uma corrente de ar a levava para baixo - tudo de maneira que as distâncias deixaram de existir e, como é costume dizer-se, do longe se fez perto.
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II
O tempo foi passando, Rosa Branca cresceu e cansou-se de viver na Aldeia. Disse então aos pais que desejava mudar-se para a Grande Cidade, o que estes aceitaram. Na verdade de nada lhes servia dizer que não - pois pode alguém prender o vento? E à jovem pastora, de mochila às costas, bastou declarar suavemente:
- Para a cidade, vamos!
Ao primeiro passo, o vento empurrou-a, ao segundo passo, o vento dominou-a, e ao terceiro passo, lá foi a menina de cabelos no ar, os braços abertos, as pernas movendo-se em largas passadas pelos verdes campos fora.
Chegada à Grande Cidade, Rosa Branca procurou abrigo em casa de uma familiar que há muitos anos deixara a Aldeia. A prima Margarida recebeu Rosa Branca com prazer, mas disse-lhe que era pobre, que por isso apenas poderia dar-lhe um quarto onde dormir, com cama e roupa lavada. Quanto ao resto, não podia ajudá-la. Havia, por isso, necessidade de que a pequena pastora arranjasse emprego.
Corajosa e decidida, Rosa Branca disse que em nada a preocupava a ideia de trabalhar, pois que desde muito criança o fazia. E saiu à procura de trabalho.
Quando descia a Grande Avenida - uma das principais da cidade -, suavemente empurrada pela mesma brisa que afagava o mármore das frontarias, Rosa Branca avistou um letreiro, dependurado de uma vitrina, que pedia para aquela loja uma empregada.
Sem hesitar, a Rosa Branca entrou, e meia dúzia de palavras trocadas já se encontrava cá fora, com um lenço a tapar-lhe os caracóis escuros, um balde com água e detergente numa mão, e uma esponja na outra.
Seguia-a a dona do estabelecimento, segurando um pequeno escadote e fazendo-lhe recomendações para que não caísse. Ora cair! Como se o vento abandonasse alguma vez a sua protegida!
E, sem a ajuda da escada, Rosa Branca lavou a magnífica montra, limitando-se a dar pequenos saltos quando desejava subir um pouco mais, ou seja, alcançar o cimo do vidro, uns bons metros acima da sua cabeça.
É claro que tal cena tinha necessariamente de chamar a atenção dos transeuntes. Estes, que em grande número desciam a avenida, no entusiasmo das compras, pararam junto àquela loja, diante da moça de faces rosadas que, em largos gestos dos braços e das pernas, polia os vidros, ora em baixo, junto ao empedrado da calçada, ora no cimo, elevando-se no ar como que por magia!
Para encontrar a explicação do que julgavam ser um truque ou uma ilusão de óptica, as pessoas começaram a entrar na loja, a fazer perguntas, e a comprar.
Depressa a proprietária da loja, Dona Dália, se apercebeu da fantástica qualidade de Rosa Branca, e passou a mandá-la para a entrada, para lavar as montras e as portas, assim atraindo enorme clientela.
Aproximava-se o Natal, e a Dona Dália vendia como nunca. Estava satisfeitíssima, e pôde mesmo aumentar o ordenado da sua jovem empregada, que também não cabia em si de contente. Afinal de contas, ganhava o necessário ao seu sustento, e conseguia ainda contribuir para as despesas da sua prima Margarida, sobrando-lhe algum dinheiro, que enviava para os pais, lá na Aldeia.
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III
Passados o Natal e a euforia das Festas, que haviam transformado a Grande Avenida num verdadeiro salão recoberto de enfeites luminosos de várias cores e inundado de gente e música, começou Rosa Branca a sentir-se cansada do serviço.
Na verdade, para quem dantes voava, montanha acima, montanha a baixo, e corria pelos campos fora, desafiando as nuvens, limitar-se agora a subir uns quantos metros tornava-se deveras aborrecido.
Também, diariamente eram apresentadas à jovem novas propostas de emprego, pretendendo dar uso à sua estranha capacidade. Grandes empresas desejavam contratá-la como paquete, para dentro dos arranha-céus de cinquenta andares transportar rápida e eficazmente documentos importantes, sem necessidade de utilizar os sempre superlotados e vagarosos elevadores. Circos famosos pretendiam exibi-la em magníficos espectáculos, atravessando em gigantescas passadas as enormes tendas de lona...
Só que nenhuma destas ofertas Rosa Branca considerava, pois sabia - e só ela o sabia! - que os seus braços, as suas pernas, o seu corpo, não voavam, qual pássaro: era, sim, o vento que a tomava e levava. Debaixo de um telhado ou abrigada entre paredes, a moça era exactamente igual a todas as outras, nada de especial a diferenciando.
Pensava Rosa Branca no rumo a dar à sua vida, quando certo dia a Dona Dália apareceu na loja a chorar. O seu filho Jacinto estava muito doente, e os médicos afirmavam que apenas o poderia salvar um remédio muito raro, existente numa única cidade do mundo: a Cidade do Nascer do Sol, que ficava exactamente do outro lado da Terra.
Dada o urgência em conseguir o medicamento, e a distância a que este se encontrava, parecia impossível que o rapaz tivesse salvação. Mesmo de avião, a viagem de ida e volta levaria muitas e muitas horas, com que Jacinto não podia infelizmente contar.
Rosa Branca, perante a pobre mãe chorosa, sentiu o coração saltar-lhe no peito, enquanto os olhos lhe ganhavam um brilho especial. Havia uma solução! Só havia uma solução! Correr até à Cidade do Nascer do Sol e trazer o medicamento para Jacinto!
Rosa Branca e o vento tinham, desta vez, uma missão importante. Não se tratava simplesmente de levar carneiros para o pasto, ou de entreter transeuntes na Grande Avenida. Agora, havia uma vida para salvar!
Tendo fixado o endereço do Hospital onde se encontrava o remédio salvador, e estudado o percurso a seguir, Rosa Branca pôs-se a caminho, arrastada pelo vento.
Pés na estrada, mochila às costas, inspirou profundamente e avançou. Logo o vento respondeu, assobiando, primeiro muito suave, muito terno, depois fortalecido em rajadas sibilantes que faziam a menina percorrer extensões enormes, impensáveis, ultrapassando planícies e rios a que se seguiam montanhas e cordilheiras, oceanos e continentes. Os alísios ajudavam, correntes intensas tornavam-se cúmplices na aventura - a menina seguia de vento em popa. E se das estradas se aproximava, os condutores ficavam a observá-la, boquiabertos perante os seus cabelos ao vento, o seu olhar fixo no horizonte, os seus pés velozes mal tocando o chão.
Rapidamente, Rosa Branca atingiu a Cidade do Nascer do Sol, encontrou o Hospital, tomou em suas mãos o medicamento precioso e guardou-o cuidadosamente na mochila. Sem esperar, acenou adeus aos doentes que haviam acorrido às janelas do edifício e, sorrindo, lhe desejavam um bom regresso. Rapidamente murmurou:
- Amigo vento, regressemos agora!
Logo o vento, para espanto de todos - e principalmente dos marinheiros que na baía orientavam as suas velas -, logo o vento mudou de feição, passando a soprar na direcção da Grande Cidade. E a moça, abrindo os braços, reiniciou passadas imensas pelo ar.
Ao entardecer Rosa Branca chegava à Grande Cidade e entregava à Dona Dália o remédio, que esta de imediato dava de beber a Jacinto. Com o olhar brilhante e as faces coradas, o rapaz engoliu o líquido dourado que a menina trouxera. Depois, com os olhos, muito escuros, pousados em Rosa Branca, murmurou apenas:
- Obrigado!
Toda a noite Rosa Branca ficou junto de Jacinto, acompanhando o seu sono inquieto. O vento assobiava, insistente, pelas frestas das janelas e das portas, com uma energia colossal. Finalmente, pela manhã, Jacinto acordou sem febre, sorriu e tomou o caldo que a mãe lhe preparou. O pior já passara - Jacinto estava salvo.
Cansada mas tranquila, Rosa Branca saiu para o sol e deixou-se levar pelo vento até casa.
Surpreendida, viu-se rodeada de pessoas que a seguiam no seu caminho. Saudavam-na, agradeciam-lhe, faziam festas ou pedidos. Outros, tiravam-lhe fotografias e imploravam autógrafos. Em suma, Rosa Branca tornara-se famosa pelo seu feito.O vento amparava-a como sempre, mas agora muito meigo, quase apagado, consciente do seu cansaço, do seu espanto, lendo-lhe no olhar o tal brilho que ninguém mais sabia explicar.
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IV
Durante os dias seguintes, os jornais, a rádio e a televisão não se cansaram de publicitar as estranhas qualidades de Rosa Branca, que correra e voara qual foguete espacial. Todos queriam entrevistas, uma resposta, uma palavra que fosse, um sorriso. Rosa Branca, a jovem pastora, era um fenómeno!
Cansada de tanto alarido, a moça regressou à Aldeia dos pais.
Junto à montanha reencontrou, cheia de felicidade, o seu cão, as ovelhas, as ervas mais verdes e tenras do alto. Ali tudo permanecia como dantes. Ao alvorecer o galo cantava. Logo cedo havia que tratar dos animais. Nas subidas pela encosta, com o rebanho e o vento, encontrava renovado prazer.
Certa tarde, andava Rosa Branca pelos campos e sentiu a chegada de um automóvel. Nele vinha Jacinto, já completamente recuperado da doença. Queria agradecer-lhe a sua cura. E a moça levou-o a passear pelas encostas da montanha e junto ao ribeiro.
Muito conversaram Rosa Branca e Jacinto, e a pastora confidenciou ao rapaz o seu segredo.
No cimo do monte, observando juntos a imensidão dos céus e os cúmulos enormes que avançavam, tridimensionais, brancos e magníficos, Jacinto sentiu também o vento no interior de si. E mais não foi necessário para que de mãos dadas viajassem os dois, cheios do ar puro das alturas, tão majestosos como as nuvens do céu.
Para Rosa Branca e Jacinto o futuro estava traçado. O vento unira-os e nada podia separá-los.
Casaram na Aldeia, numa festa que reuniu a família e os amigos. Depois partiram, felizes.
Agora vivem em África, onde se dedicam a auxiliar as populações pobres e isoladas. Transportam e distribuem notícias, livros, alimentos, água e medicamentos. Nas escolas e hospitais sitos nos mais recônditos locais do continente africano, os seus nomes soam a esperança. Pela savana são familiares as suas figuras esvoaçantes.
Sem a intervenção da televisão e dos jornais, os actos de Rosa Branca e Jacinto não são dados a conhecer ao mundo, mas ficam guardados, com eterno reconhecimento, no coração das crianças, mulheres e homens a quem ajudam.
De quando em quando Rosa Branca e Jacinto voltam à Aldeia, com os seus filhos, Jasmim e Violeta.
Pela tarde, brincando com o cão ou colhendo flores amarelas na montanha, todos voam com o vento!
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quarta-feira, 22 de julho de 2009

OS GANSOS, poesia de Maria da Fonseca

The Goose Girl (The Duck Pond), circa 1890
by
Camille Pissarro
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Como a tarde cai amena
Sobre o parque da cidade!
Seu lago é cheio de vida
E seu perfume é saudade.

A deslizar sobre a água
Vão os cisnes elegantes,
Enquanto os lindos patinhos
Andam à volta, inconstantes.

São os risos das crianças
E a brincadeira das aves,
A quem elas dão comida,
Duas notas bem suaves.

Mas atenção, de repente
Ouvem-se gritos na margem.
Aparecem quatro gansos
Vindos de trás da folhagem.

Eles estão lado a lado
Com seu ar de importância.
Levantam as suas asas
E olham com arrogância.

Num ápice estão no lago
A nadar com decisão.
Seus gritos tão estridentes
Quebraram minha ilusão.

Ficou um ganso na relva!
Um filhote que parou,
Mostrando um certo receio,
À água não se lançou.

Volta o parque da cidade
À sua alegre harmonia,
E volta o meu coração
A aceitar a fantasia.
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domingo, 19 de julho de 2009

A FLAUTA MÁGICA, história da Avómi



Era um barulho ensurdecedor na capoeira e ninguém sabia porquê.

- Có, có, ró, có, có, có,
có, có, ró, có, có, có,
có, có, ró, có, có, có...

O Senhor Pinto, já cansado de ouvir tanto barulho, saiu de casa e foi até à capoeira, que era ao fundo da quinta.

Estava uma noite péssima, e chovia torrencialmente. O vento abanava as árvores e, mal o Senhor Pinto se descuidou, virou-se-lhe o guarda-chuva e ficou molhado que nem um pintainho, mas nem por isso deixou de ir à capoeira, para tentar por termo à guerra que lá existia.

Quando lá chegou, ficou todo arrepiado, porque aquilo era um pandemónio; desde penas pelo ar, peles arrancadas, pernas partidas, havia tudo que lhe desagradava. Muito zangado, entrou na capoeira, mas por mais que gritasse para se fazer ouvir, as galinhas não o ouviam e continuavam aos pulos, picando-se umas às outras com o seu có, có, ró, có, có ensurdecedor.

O Senhor Pinto, furioso, sem conseguir aquietar as galinhas que além de se picarem umas às outras, ainda o picavam no meio daquela confusão, saiu, voltou a casa e disse à mulher:

- Ó mulher, não sei que hei-de fazer! As galinhas estão todas loucas e não consegui sossegá-las. Vai lá tu, que és mais paciente e talvez consigas alguma coisa.

A Senhora Pinta, muito senhora do seu nariz e convencida que resolvia todos os problemas, disse:

- Claro que vou conseguir! Tu não conseguiste, porque não usaste a cabeça para pensar. Bastava que tivesses levado a tua flauta e tivesses tocado aquelas melodias lindíssimas, que tão bem sabes tocar, e elas ficariam logo quietinhas.

- Achas que daria resultado, mulher?

- Claro que sim, homem! Os animais gostam de música! Quem é que não gosta de te ouvir tocar flauta, marido? Se fores até à capoeira com a tua flauta e proporcionares às galinhas uns momentos de bela música, garanto-te que ficarão deliciadas e paradinhas a escutar. É certo que, depois de tamanha revolução, muitas delas devem estar feridas e há que tratar delas, mas irei contigo, levarei a malinha dos medicamentos, e enquanto tu tocas flauta, eu vou pegando uma a uma, para tratar os ferimentos.

Estou a pensar, que o causador daquelas guerras, é aquele galo grande que comprámos há dias! Antes elas davam-se tão bem!

- És capaz de ter razão, mulher!

- Tenho, tenho, não tenhas dúvida! Mas para termos a certeza absoluta, vamos experimentar tirá-lo de lá e logo veremos.

Dirigiram-se ambos à capoeira, a Senhora Pinta com a mala dos medicamentos e o Senhor Pinto com a flauta mágica que, pelo caminho, começou a tocar. Quando chegaram ao galinheiro, já as galinhas estavam sossegadas e a beber água nos bebedouros, para refrescarem os bicos.

A Senhora Pinta começou imediatamente a tratá-las, pois estavam todas feridas, e o Senhor Pinto foi tocando uma linda melodia, para as acalmar.

Depois de todas as galinhas tratadas, retiraram o galo da capoeira e daí em diante não houve mais guerra entre os galináceos.

Ah, esquecia-me de dizer que o Senhor Pinto, apesar da paz que passou a haver na capoeira, continua a ir tocar lindas músicas, para distrair as galinhas. Sempre que isso acontece, elas ficam tão quietas e fascinadas, que causam admiração.
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terça-feira, 14 de julho de 2009

LEVAVA EU UM JARRINHO, poesia de Fernando Pessoa


Levava eu um jarrinho
P’ra ir buscar vinho
Levava um tostão
P’ra comprar pão;
E levava uma fita
Para ir bonita.
Correu atrás
De mim um rapaz:
Foi o jarro p’ra o chão,
Perdi o tostão,
Rasgou-se-me a fita...
Vejam que desdita!
Se eu não levasse um jarrinho,
Nem fosse buscar vinho,
Nem trouxesse uma fita
Para ir bonita,
Nem corresse atrás
De mim um rapaz
Para ver o que eu fazia,
Nada disto acontecia.



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domingo, 12 de julho de 2009

O MENINO RABINO, história de Ilona Bastos


Era uma vez um Menino Rabino que não parava de falar. Falava sozinho. Falava aos pássaros, que lhe respondiam em alegre chilrear. Falava às flores, que encenavam danças ao vento. Falava ao próprio vento, que desconversava em rabanadas vigorosas. E por vezes falava às pessoas, que o ouviam, surpreendidas, não entendendo as suas palavras. Então, o Menino esbracejava, lançando os pequenos punhos ao ar, para em seguida os baixar e continuar o seu caminho.
Por tudo se interessava o Menino, de olhar irrequieto, observando, tacteando com os seus deditos gorduchos, depois atirando: a bola em que pegara; o carro dos bombeiros, buzinando, estridente; o coelho de peluche, de dentitos atrevidos; a revista rasgada, salpicando a cor dos anúncios pelo chão da sala.
Que intrigante, o Menino Rabino! Meiguinho, de acariciar na maciez das suas bochechinhas coradas ou no dourado do seu cabelo suave. E falador, sempre, sempre. Se alguma coisa lhe diziam, o Menino Rabino, com os olhos redondos, malicioso, sorria, e logo iniciava o seu discurso próprio, com palavras que só ele conhecia, muito enfáticas, veementes, exclamativas!
Certo dia, foi o Menino ao campo. Brincou com os esquilos descarados que de árvore em árvore saltitavam, surripiando nozes. Banhou-se no lago, por entre os reflexos dos raios solares e o luzir das escamas dos peixinhos vermelhos. E arranjou um amigo. Era um sapo pequenino e verde, que lançava "croacs e crancs" à sua volta, com surpreendente energia.



Curioso, o Menino Rabino pegou no sapinho e, com uma habilidade insuspeitada, a que deu auxílio a vontade do engraçado batráquio, meteu-o dentro de uma caixa de plástico que transportara os pães para o piquenique.
De regresso a casa, sem chamar a atenção sobre o seu companheiro de viagem, veio o Menino Rabino, bem-comportado, empoleirado no estofo do automóvel, espreitando as árvores que à beira da estrada com eles se cruzavam - alongadas nuvens de verde brilhante - a grande velocidade.
No seu quarto, encontrou o Menino adequado recanto para o visitante que, maravilhado, o olhava. Do jantar, comido em silêncio, retirou uma malga de água que para o esconderijo levou, à socapa. E ninguém desconfiou de nada, pese embora o facto de o Menino não falar, o que não era seu hábito.
Com o amigo, no quarto, também a conversa não era necessária. Por estranho que pareça, bastava um sorriso, um gesto, um olhar, e logo se entendiam. Tudo estava dito.
O sono da noite foi bom para os dois que, já depois de apagada a luz, a janela aberta, a cortina afastada, olharam as estrelas até tarde. O cantar dos grilos fez-se nítido por entre o ladrar dos cães, ao luar. Soltaram ainda pequenas gargalhadas a respeito de uma borboleta nocturna que, desastrada, dava turras num candeeiro de rua. Chegaram mesmo a sentar-se no parapeito baixo, de rés-do-chão, e espreitar os ratitos pequenos que rapidamente atravessavam a relva.

Finalmente, adormeceram, felizes.
No dia seguinte é que foi a verdadeira surpresa. Não por causa do sapinho, naturalmente, que se escondeu, por quaisquer artes mágicas, e não foi encontrado. O espanto estava no Menino, que não falava. Sim, de tão falador que era, tornou-se silencioso. E no entanto, não estava triste. Continuava a mostrar interesse por tudo, mas um interesse mais recatado - como direi? - mais sério, como que mais importante. Tão importante que nem dava resposta à mãe quando lhe perguntava se queria leite, ou pão, de que tanto gostava. E, de corrida para o quarto, lépido, ocultando um sorriso matreiro por entre as mãozitas fechadas em concha, acabava na risota com o seu amigo sapinho.
Rebolavam, a rir, sobre a manta azul que cobria o chão. O Menino Rabino tinha um segredo e ninguém o sabia. E o sapito, tão esperto que era, não se deixava apanhar.
Quantas brincadeiras, às escondidas, no quarto! E depois, durante a noite, a ousadia de saltar para a relva e jogar à apanhada, saltitando por entre as árvores do jardim. Estando mais fresco, enfiavam gorros, cabeças abaixo, e cobriam-se com mantas. Quando aquecia, salpicavam-se com a água que o Menino Rabino trouxera da cozinha, ou esgueiravam-se até à mangueira, esquecida no pátio.
Bom, o tempo foi passando, e um belo dia, sem avisos nem despedidas, o sapinho desapareceu. Isso mesmo. O Menino chegou a casa, vindo da escola, e procurou o seu amigo: debaixo da cama, onde às vezes gostava de descansar; em cima do armário, onde se acomodava para o surpreender; rentinho à cómoda, junto aos automóveis, onde frequentemente meditava. E nada. O sapinho não estava lá - apenas a janela aberta.
Ágil, o Menino saltou o parapeito, e tudo lhe pareceu diferente. Não pior, nem mais feio. Somente diferente. Do sapinho, nem sombra.
Ao fundo, rosadas, as nuvens pincelavam tonalidades lindas ao pôr do sol. Alguns pássaros chilreavam. E foi então que o Menino percebeu. Ou melhor, não percebeu!
Não percebeu o que os pássaros diziam. Em contrapartida, o seu canto... Que melodia!
Uma leve brisa soprava, e ao Menino soou a vento, vento agradável e fresco, mas que nenhuma mensagem lhe trazia.
As flores fechavam-se, ao cair da noite sem lhe contar as novidades do costume, que o faziam sorrir. Porém, a cor das suas pétalas encantou o Menino, que as achou encantadoras, nas suas roupas de festa!
O Menino voltou a trepar à janela e entrou no quarto. Por momentos, a ausência do sapinho, seu companheiro, tomou-o de melancolia. Mas foi só durante dois segundos!

Rapidamente, correu para a porta, atravessou o corredor e entrou na sala, onde a mãe punha a mesa, sem palavras, já acostumada aos silêncios do filho.
Então, o Menino Rabino - mais menino, mais rabino do que nunca! - correu de bracitos estendidos para abraçar a mãe.
- Mãe! Mãe! Amanhã vamos dar um passeio ao campo, está bem?
E a mãe percebeu!
A partir desse dia o Menino voltou a falar. Só que de uma maneira diferente: não falava sempre, mas sempre que falava todas as pessoas o entendiam.
Também o compreendeu o sapinho, nosso conhecido, quando o Menino Rabino o reencontrou, meses mais tarde, numa patuscada com os pais à beira do lago. Chefe de família ajuizado, já não soltava à toa os seus “croacs e crancs", mas ao Menino Rabino cumprimentou com grande alegria. Juntos, recordaram as brincadeiras passadas, e ainda soltaram umas belas gargalhadas.
Não se espantem por o sapinho compreender o menino agora que ele falava como todas as outras pessoas. É que os amigos, independentemente da língua que utilizem, sempre se entendem!
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quinta-feira, 2 de julho de 2009

A PANTUFA DO RICARDO, poesia de Maria da Fonseca



Ficou bem na nossa casa,
A pantufa do Ricardo.
Por sinal ‘stava escondida,
Onde sempre, as minhas, guardo.

Como choraste, Menino,
Por não achares a pantufa!
Procuraste incomodado
Numa grande lufa-lufa.

O teu Anjinho da Guarda
Não quis que ninguém a achasse.
Foi uma procura em vão,
Para que ela cá ficasse.

Qual é dos teus dois irmãos
O que faz mais travessuras?
Qual deles o mais traquinas
A aumentar tuas agruras?

Terá sido o Miguel gémeo
Que arranjou esta embrulhada?
Aprendeu “arruma, arruma”,
E a acção associada!

Ou o David, mais velho,
Que gosta de te assustar,
De pregar sua partida,
Só para te arreliar?

Ricardo, eu nunca me esqueço
De vós, meus queridos Netos.
Mas, a pantufa ficou
Pra recordar meus afectos.
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terça-feira, 30 de junho de 2009

A BELA E OS TRÊS URSINHOS, história da Avómi

A Ana é uma menina muito bonita, simpática, inteligente, e toda a gente gosta muito dela.
De vez em quando, as coisas não acontecem como seria desejo da Ana, pelo que ela fica com uma cara muito séria e não fala, porque é, como se costuma dizer, "senhora do seu nariz". Nessas ocasiões não parece nada aquela menina tão linda!

Desconhecia esta faceta da Ana e fiquei surpreendida quando a mãe, a Leonor de quem sou muito amiga, mo disse uma vez que estava descontente e triste. Foi apenas um desabafo de amiga para amiga. É certo que todos temos defeitos, mas as mães ficam muito tristes quando os filhos manifestam qualquer sentimento menos agradável. Mas a Ana tem tantas qualidades, que este pequeno defeito passa despercebido, porque não prejudica ninguém.

Agora reparo, que estou a falar nas qualidades e defeitos da Ana, quando queria dizer:

A Ana fez ontem anos e como tem muitos amigos...

- Quem adivinha o que aconteceu?

Bem, como ninguém adivinha, vou contar:

Os amigos resolveram homenageá-la com um jantar e, como estão todos de férias na praia, a festa foi à beira-mar. Foi um jantar muito agradável, a noite estava fabulosa e divertiram-se muito. Não faltou o bolo de anos com velinhas e, a propósito de velinhas, quero dizer que se viram gregos para as acender, pois o Senhor Vento estava bastante atrevido e soprava, soprava... Mas a dada altura, pensou que estava a ser mauzinho e deixou que se acendessem as velas. Ficou quietinho debaixo do toldo e foi observando tudo que faziam. Achou graça, quando cantaram "Parabéns a Você" e a Ana, de um sopro só, apagou as velas. Achou esquisito, quando depois de apagadas as velas bateram palmas, e pensou:

- "Quando sopro ninguém bate palmas!
Hei-de perguntar àqueles jovens, qual a razão por que bateram palmas".

O Vento acabou por não perguntar nada sobre as palmas, ficou só ali muito quieto a apreciar a festa, que estava divertidíssima.

Referi-me apenas a uma parte da festa, mas antes, em casa da Ana houve festa também. É certo que, como toda a gente procurava a Ana, foi difícil preparar as coisas para a festa, dado que era um corrupio, ora para a porta, ora para o telefone que não parava de tocar, e a Leonor estava a ver que não conseguia fazer os preparativos a tempo e horas. Contudo, com a boa vontade de todos, tudo se conciliou e fez-se uma festa bastante agradável.

A maior surpresa da aniversariante, foi quando uma das vezes que bateram à porta, espreitou pelo ralo para ver quem era e, deparou-se com três Ursinhos. (nunca se deve abrir a porta sem espreitar pelo ralo, e a Ana sempre foi muito cuidadosa. Quando era pequenina levava um banquinho para junto da porta e subia para chegar ao ralo e espreitar. Nunca se deve abrir a porta sem saber a quem).

- Que quereis, Ursinhos? - perguntou a Ana.

- Felicitar-te! - responderam sorridentes, mãozinhas levantadas para mostrar os balões que levavam para a Ana.

A Ana ficou boquiaberta, porque não conhecia os Ursinhos, mas achou-os tão encantadores, que abriu a porta e mandou-os entrar. Eles tinham ouvido falar da Ana e tinham que a conhecer, por isso se atreveram, ainda que com o risco de não serem recebidos (às vezes as pessoas têm medo dos ursos!)

Apresentados a toda a família, a aniversariante encaminhou-os para a mesa muito bem posta onde não faltavam as melhores iguarias e belos enfeites. Ali, saborearam petiscos nunca imaginados por eles e ainda assistiram ao partir do bolo de anos, que comeram com satisfação, tão delicioso ele estava.

Para despedida, os Três Ursinhos cantaram uma cantiguinha à Ana:

Nós somos os três Ursinhos
brancos da cor do algodão
dos meninos amiguinhos
do fundo do coração

Da Ana ouvimos falar
e do seu aniversário
da festa a organizar
da escassez do horário

Como somos atrevidos
batemos à porta dela
e fomos bem recebidos
baptizámo-la de BELA

A Leonor atarefada
com atenção às visitas
e que bela pequenada
fatiotas tão catitas

Parabéns à nossa BELA
radioso como flor
bonita mas bem singela
por isso é um AMOR

Quando à noite se juntou aos amigos na praia, a Ana falou-lhes da visita dos Ursinhos e repetiu os versinhos que eles lhe dedicaram.

Foi um dia inolvidável para todos e, sobretudo, para a Ana.
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segunda-feira, 29 de junho de 2009

SÃO FRANCISCO, poesia de Vinícius de Moraes

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Lá vai São Francisco
Pelo caminho
De pé descalço
Tão pobrezinho
Dormindo à noite
Junto ao moinho
Bebendo a água
Do ribeirinho.


Lá vai São Francisco
De pé no chão
Levando nada
No seu surrão
Dizendo ao vento
Bom-dia, amigo
Dizendo ao fogo
Saúde, irmão.


Lá vai São Francisco
Pelo caminho
Levando ao colo
Jesuscristinho
Fazendo festa
No menininho
Contando histórias
Pros passarinhos.
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domingo, 28 de junho de 2009

A PARTIDA, história de Ilona Bastos


A Lili e a Lóló são duas meninas iguais. Têm os mesmos olhos castanhos e meigos, as mesmas bochechas rosadas, as mesmas boquinhas redondas e vermelhas.
A Lili e a Lóló são duas gémeas verdadeiras, e se não fosse por um pequeno pormenor ninguém conseguiria distingui-las: a Lili tem o cabelo liso, e a Lóló tem caracóis.
Mesmo quando a mãe as veste de igual, com uns vestidinhos curtos aos folhos e às flores coloridas, logo as vizinhas as diferenciam: a Lili, pelo cabelo sedoso e solto, caindo-lhe leve sobre os ombros; a Lóló, pelos caracóis redondinhos, aos cachos, que lhe emolduram a carinha simpática.
A Lili e a Lóló são muito traquinas e adoram pregar partidas.
No mês passado planearam enganar as amigas, fazendo-se passar uma pela outra.
- É simples! - disse a Lili à Lóló. - Basta trocarmos de penteados quando formos à festa da Joana.
A Lóló olhou para o espelho e tocou nos caracóis.
- Com uma escova e o secador posso tornar o meu cabelo bem liso. - disse ela.
- Com uns rolos e algum gel encho-me de caracóis. - resolveu a Lili.
Tão bem foi guardado o segredo que nem a mãe desconfiou. E a prática de esticar e enrolar os cabelos das bonecas mostrou-se preciosa no momento de meter mãos à obra.
- Que tal estou, Lili? - perguntou a Lili à Lóló, já com a cabeça coberta de caracóis.
- Óptima, Lóló! Aliás, como eu, não é verdade? – respondeu a Lóló à Lili, entusiasmada com o esvoaçar do cabelo liso junto ao pescoço.
O plano estava a correr às mil maravilhas, e muito haviam de se rir as gémeas quando as amigas percebessem como tinham sido enganadas!
A Lili e a Lóló vestiram as saias castanhas, escolheram as blusas amarelas e calçaram os sapatos de festa.
- Muito bem, meninas! - aprovou a mãe, com um sorriso carinhoso - Estão muito bonitas! Mas não se esqueçam dos guarda-chuvas, porque está a chover muito, lá fora...
As gémeas trocaram um olhar cúmplice, e tiraram os chapéus do bengaleiro. A Lili trouxe o guarda-chuva vermelho, da Lóló. A Lóló trouxe o guarda-chuva azul, da Lili. E seguiram a mãe até ao automóvel, onde se instalaram, muito satisfeitas.
Já sentada ao volante, a mãe, de repente, voltou-se para trás.
- O que se passa? - perguntou, surpreendida. – Hoje resolveram trocar de guarda-chuvas?
As gémeas coraram.
- Ó mãe, como é que descobriste?! - gritaram, em coro.
- É claro como água! - exclamou a mãe, soltando uma gargalhada.
A Lili e a Lóló olharam-se no espelho retrovisor e tudo compreenderam. Fora a chuva, traiçoeira, que num minuto encaracolara o tão esticado cabelo da Lóló, e esticara o tão enrolado cabelo da Lili.
Com a água é que as gémeas não tinham contado!

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terça-feira, 23 de junho de 2009

A CORRIDA DA BARATA E DO CARACOL, história da Avómi

Certo dia, logo ao romper da manhã, uma Barata começou o seu passeio no jardim. Ainda estava um pouco escuro e ela andava às apalpadelas, porque não via bem; passava sobre uma flor, na terra fria, subia uma parede, voltava a descer... Mais tarde, já cansada, sentou-se um bocadinho à beira dum muro. Foi olhando em redor de si e, a dada altura, viu um Caracol que se deslocava lentamente. Como já tinha descansado um bom bocado, sentia-se pronta para novo passeio e pensou:

- Vou convidar o amigo Caracol, para fazer uma corrida. Está a apetecer-me uma corridinha, porque está frio e preciso de aquecer!

- Bom dia, amigo Caracol! Então que faz por aqui?

- Ó amiga Barata, acordei cedo e resolvi dar um passeio pelo jardim, mas hoje está uma manhã fria e já estou arrependido de não ter ficado na caminha. Estava tão quentinha!!!

- Está muito frio, está! - Exclamou a Barata - Por isso, estava mesmo agora a pensar convidá-lo para uma corridinha.

- É uma excelente ideia! - Exclamou o Caracol, sem medir as palavras - Mas ficou a pensar e, antes que ela voltasse a falar, disse:

- Ó amiga Barata, não acha que é uma competição que me vai deixar envergonhado?

- Bem, se o fizesse com esse fim, é natural que o amigo Caracol ficasse mal classificado, dado que é muito mais lento que eu. Porém, não se trata disso, mas de uma corridinha, para aquecer.

- Então vamos a ela!... - Exclamou o Caracol, todo contente.

Correram um bom bocado e, claro, a Barata sempre à frente. Coitadinho do Caracol, por mais que se esforçasse, não conseguia acompanhar a Barata. Transpirava, transpirava, já não podia com a própria concha, que pesava mais que nunca. Contudo, fez um esforço e continuou, apesar de há muito ter perdido de vista a amiga Barata. Qual não foi o seu espanto, quando, a dado momento, se encontrou com ela que chorava copiosamente, cheia de dores. A pobre Barata tinha tido uma cãibra, que a obrigou a parar um grande bocado e, por isso, o Caracol a apanhou.

- Está a ver, amigo Caracol, que nem sempre ganha o mais veloz?! Se tivéssemos feito uma corrida a sério, o meu amigo tê-la-ia ganho!

- É verdade, amiga Barata! Quem diria?
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TROVAS DE S. JOÃO, poesia de Maria da Fonseca

Localização: Sanhoane
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Na noite de S. João
A minha terra querida
Salta prà rua a brincar
‘Squece as agruras da vida.

Desce do trono e vem já
S. João, meu grande Amigo,
Larga a tua ovelhinha
E vem prà festa comigo.

Na noite de S. João
Toda a gente anda a brincar
Bate bate martelinho
Mas sempre sem magoar.

A seguir ao Santo António
Vem o nosso S. João.
Muita alegria na praça
E em cada coração.
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sábado, 20 de junho de 2009

BOAS NOITES, poesia de João de Deus


Lavadeira, de Alfredo Roque Gameiro,
grande pintor aguarelista contemporâneo (1864-1935)

Estava uma lavadeira
A lavar numa ribeira
Quando chega um caçador:
- Boas tardes, lavadeira!
- Boas tardes, caçador!
- Sumiu-se a perdigueira
Ali naquela ladeira;
Não me fazeis o favor
De me dizer se a brejeira
Passou aqui a ribeira?
- Olhai que, dessa maneira,
Até um dia, senhor,
Perdereis a caçadeira,
Que ainda é perda maior.
- Que importa, lavadeira!
Aqui na minha algibeira
Trago dobrado valor...
Assim eu fora senhor
De levar a vida inteira
Só a ver o meu amor
Lavar roupa na ribeira!
- Talvez que fosse melhor...
Ver coser a costureira!
Vir de ladeira em ladeira
Apanhar esta canseira,
E tudo só por amor
De ver uma lavadeira
Lavar roupa na ribeira...
É escusado, senhor!
- Boas noites... lavadeira!
- Boas noites... caçador!

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