quinta-feira, 30 de julho de 2009

A BORBOLETA, poesia de Olavo Bilac

Fotografia de Adriano Nobre
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Trazendo uma borboleta,
Volta Alfredo para casa.
Como é linda! é toda preta,
Com listas douradas na asa.
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Tonta, nas mãos da criança,
Batendo as asas, num susto,
Quer fugir, porfia, cansa,
E treme, e respira a custo.
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Contente, o menino grita:
"É a primeira que apanho,
"Mamãe! vê como é bonita!
"Que cores e que tamanho!
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"Como voava no mato!
"Vou sem demora pregá-la
"Por baixo do meu retrato,
"Numa parede da sala".
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Mas a mamãe, com carinho,
Lhe diz: "Que mal te fazia,
"Meu filho, esse animalzinho,
"Que livre e alegre vivia?
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"Solta essa pobre coitada!
"Larga-lhe as asas, Alfredo!
"Vê como treme assustada . . .
"Vê como treme de medo . . .
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"Para sem pena espetá-la
"Numa parede, menino,
"É necessário matá-la:
"Queres ser um assassino?"
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Pensa Alfredo . . . E, de repente,
Solta a borboleta . . . E ela
Abre as asas livremente,
E foge pela janela.
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"Assim, meu filho! perdeste
"A borboleta dourada,
"Porém na estima cresceste
"De tua mãe adorada . . .
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"Que cada um cumpra sua sorte
"Das mãos de Deus recebida:
"Pois só pode dar a Morte
"Aquele que dá a Vida!"
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terça-feira, 28 de julho de 2009

VOANDO COM O VENTO, história de Ilona Bastos

I
Era uma vez uma pequena pastora chamada Rosa Branca, que vivia com os pais junto a uma alta montanha.
Desde criança, os pais haviam encarregado Rosa Branca de subir ao monte todos os dias, para guardar o rebanho. E a pequenita, vestindo a sua capa de lã, trepava com esforço, encosta acima, até pastagens verdes e tenras.
Ora acontece que certo dia, achando-se Rosa Branca no alto da montanha, entretida a atirar pedras ao longe, para o cão as apanhar e trazer de volta, ouviu um som muito fino.
Olhou em redor, para baixo e para cima, mas não conseguiu descobrir o que produzira tal ruído, pelo que lhe pareceu que o barulho era causado pelo ar. Era o ar que falava, ou melhor, o ar em movimento: o vento.
O vento que, no céu muito azul, empurrava as nuvens, brancas e luminosas, a grande velocidade, como um cajado de pastor guiando o seu rebanho para o norte. O vento que, ao ouvido de Rosa Branca, murmurava, sussurrava, brincando-lhe com os braços e as pernas, puxando-lhe o cabelo, fazendo-lhe festas na cara.
A menina sorriu, com alegria. E logo, numa troca de sons e aragens, o vento e a pequena pastora tornaram-se amigos, de tal modo que, nesse fim de tarde, de regresso a casa, montanha abaixo, a menina sentiu que o vento a acompanhava e ajudava na descida.
No dia seguinte, também para a subida - esta mais difícil - o vento deu o seu auxílio, empurrando energicamente Rosa Branca, de tal forma que lhe bastou dar grandes passadas pelo ar, que do resto a aragem se encarregou. E em três tempos chegou às pastagens do alto.
Como se entendiam, que ideias ou brisas trocavam, não é sabido, apenas que desde então Rosa Branca deixou de se fazer transportar de carroça, carro ou camioneta, pois que voava com o vento: se queria subir, de imediato o ar soprava para cima; se desejava descer, logo uma corrente de ar a levava para baixo - tudo de maneira que as distâncias deixaram de existir e, como é costume dizer-se, do longe se fez perto.
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II
O tempo foi passando, Rosa Branca cresceu e cansou-se de viver na Aldeia. Disse então aos pais que desejava mudar-se para a Grande Cidade, o que estes aceitaram. Na verdade de nada lhes servia dizer que não - pois pode alguém prender o vento? E à jovem pastora, de mochila às costas, bastou declarar suavemente:
- Para a cidade, vamos!
Ao primeiro passo, o vento empurrou-a, ao segundo passo, o vento dominou-a, e ao terceiro passo, lá foi a menina de cabelos no ar, os braços abertos, as pernas movendo-se em largas passadas pelos verdes campos fora.
Chegada à Grande Cidade, Rosa Branca procurou abrigo em casa de uma familiar que há muitos anos deixara a Aldeia. A prima Margarida recebeu Rosa Branca com prazer, mas disse-lhe que era pobre, que por isso apenas poderia dar-lhe um quarto onde dormir, com cama e roupa lavada. Quanto ao resto, não podia ajudá-la. Havia, por isso, necessidade de que a pequena pastora arranjasse emprego.
Corajosa e decidida, Rosa Branca disse que em nada a preocupava a ideia de trabalhar, pois que desde muito criança o fazia. E saiu à procura de trabalho.
Quando descia a Grande Avenida - uma das principais da cidade -, suavemente empurrada pela mesma brisa que afagava o mármore das frontarias, Rosa Branca avistou um letreiro, dependurado de uma vitrina, que pedia para aquela loja uma empregada.
Sem hesitar, a Rosa Branca entrou, e meia dúzia de palavras trocadas já se encontrava cá fora, com um lenço a tapar-lhe os caracóis escuros, um balde com água e detergente numa mão, e uma esponja na outra.
Seguia-a a dona do estabelecimento, segurando um pequeno escadote e fazendo-lhe recomendações para que não caísse. Ora cair! Como se o vento abandonasse alguma vez a sua protegida!
E, sem a ajuda da escada, Rosa Branca lavou a magnífica montra, limitando-se a dar pequenos saltos quando desejava subir um pouco mais, ou seja, alcançar o cimo do vidro, uns bons metros acima da sua cabeça.
É claro que tal cena tinha necessariamente de chamar a atenção dos transeuntes. Estes, que em grande número desciam a avenida, no entusiasmo das compras, pararam junto àquela loja, diante da moça de faces rosadas que, em largos gestos dos braços e das pernas, polia os vidros, ora em baixo, junto ao empedrado da calçada, ora no cimo, elevando-se no ar como que por magia!
Para encontrar a explicação do que julgavam ser um truque ou uma ilusão de óptica, as pessoas começaram a entrar na loja, a fazer perguntas, e a comprar.
Depressa a proprietária da loja, Dona Dália, se apercebeu da fantástica qualidade de Rosa Branca, e passou a mandá-la para a entrada, para lavar as montras e as portas, assim atraindo enorme clientela.
Aproximava-se o Natal, e a Dona Dália vendia como nunca. Estava satisfeitíssima, e pôde mesmo aumentar o ordenado da sua jovem empregada, que também não cabia em si de contente. Afinal de contas, ganhava o necessário ao seu sustento, e conseguia ainda contribuir para as despesas da sua prima Margarida, sobrando-lhe algum dinheiro, que enviava para os pais, lá na Aldeia.
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III
Passados o Natal e a euforia das Festas, que haviam transformado a Grande Avenida num verdadeiro salão recoberto de enfeites luminosos de várias cores e inundado de gente e música, começou Rosa Branca a sentir-se cansada do serviço.
Na verdade, para quem dantes voava, montanha acima, montanha a baixo, e corria pelos campos fora, desafiando as nuvens, limitar-se agora a subir uns quantos metros tornava-se deveras aborrecido.
Também, diariamente eram apresentadas à jovem novas propostas de emprego, pretendendo dar uso à sua estranha capacidade. Grandes empresas desejavam contratá-la como paquete, para dentro dos arranha-céus de cinquenta andares transportar rápida e eficazmente documentos importantes, sem necessidade de utilizar os sempre superlotados e vagarosos elevadores. Circos famosos pretendiam exibi-la em magníficos espectáculos, atravessando em gigantescas passadas as enormes tendas de lona...
Só que nenhuma destas ofertas Rosa Branca considerava, pois sabia - e só ela o sabia! - que os seus braços, as suas pernas, o seu corpo, não voavam, qual pássaro: era, sim, o vento que a tomava e levava. Debaixo de um telhado ou abrigada entre paredes, a moça era exactamente igual a todas as outras, nada de especial a diferenciando.
Pensava Rosa Branca no rumo a dar à sua vida, quando certo dia a Dona Dália apareceu na loja a chorar. O seu filho Jacinto estava muito doente, e os médicos afirmavam que apenas o poderia salvar um remédio muito raro, existente numa única cidade do mundo: a Cidade do Nascer do Sol, que ficava exactamente do outro lado da Terra.
Dada o urgência em conseguir o medicamento, e a distância a que este se encontrava, parecia impossível que o rapaz tivesse salvação. Mesmo de avião, a viagem de ida e volta levaria muitas e muitas horas, com que Jacinto não podia infelizmente contar.
Rosa Branca, perante a pobre mãe chorosa, sentiu o coração saltar-lhe no peito, enquanto os olhos lhe ganhavam um brilho especial. Havia uma solução! Só havia uma solução! Correr até à Cidade do Nascer do Sol e trazer o medicamento para Jacinto!
Rosa Branca e o vento tinham, desta vez, uma missão importante. Não se tratava simplesmente de levar carneiros para o pasto, ou de entreter transeuntes na Grande Avenida. Agora, havia uma vida para salvar!
Tendo fixado o endereço do Hospital onde se encontrava o remédio salvador, e estudado o percurso a seguir, Rosa Branca pôs-se a caminho, arrastada pelo vento.
Pés na estrada, mochila às costas, inspirou profundamente e avançou. Logo o vento respondeu, assobiando, primeiro muito suave, muito terno, depois fortalecido em rajadas sibilantes que faziam a menina percorrer extensões enormes, impensáveis, ultrapassando planícies e rios a que se seguiam montanhas e cordilheiras, oceanos e continentes. Os alísios ajudavam, correntes intensas tornavam-se cúmplices na aventura - a menina seguia de vento em popa. E se das estradas se aproximava, os condutores ficavam a observá-la, boquiabertos perante os seus cabelos ao vento, o seu olhar fixo no horizonte, os seus pés velozes mal tocando o chão.
Rapidamente, Rosa Branca atingiu a Cidade do Nascer do Sol, encontrou o Hospital, tomou em suas mãos o medicamento precioso e guardou-o cuidadosamente na mochila. Sem esperar, acenou adeus aos doentes que haviam acorrido às janelas do edifício e, sorrindo, lhe desejavam um bom regresso. Rapidamente murmurou:
- Amigo vento, regressemos agora!
Logo o vento, para espanto de todos - e principalmente dos marinheiros que na baía orientavam as suas velas -, logo o vento mudou de feição, passando a soprar na direcção da Grande Cidade. E a moça, abrindo os braços, reiniciou passadas imensas pelo ar.
Ao entardecer Rosa Branca chegava à Grande Cidade e entregava à Dona Dália o remédio, que esta de imediato dava de beber a Jacinto. Com o olhar brilhante e as faces coradas, o rapaz engoliu o líquido dourado que a menina trouxera. Depois, com os olhos, muito escuros, pousados em Rosa Branca, murmurou apenas:
- Obrigado!
Toda a noite Rosa Branca ficou junto de Jacinto, acompanhando o seu sono inquieto. O vento assobiava, insistente, pelas frestas das janelas e das portas, com uma energia colossal. Finalmente, pela manhã, Jacinto acordou sem febre, sorriu e tomou o caldo que a mãe lhe preparou. O pior já passara - Jacinto estava salvo.
Cansada mas tranquila, Rosa Branca saiu para o sol e deixou-se levar pelo vento até casa.
Surpreendida, viu-se rodeada de pessoas que a seguiam no seu caminho. Saudavam-na, agradeciam-lhe, faziam festas ou pedidos. Outros, tiravam-lhe fotografias e imploravam autógrafos. Em suma, Rosa Branca tornara-se famosa pelo seu feito.O vento amparava-a como sempre, mas agora muito meigo, quase apagado, consciente do seu cansaço, do seu espanto, lendo-lhe no olhar o tal brilho que ninguém mais sabia explicar.
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IV
Durante os dias seguintes, os jornais, a rádio e a televisão não se cansaram de publicitar as estranhas qualidades de Rosa Branca, que correra e voara qual foguete espacial. Todos queriam entrevistas, uma resposta, uma palavra que fosse, um sorriso. Rosa Branca, a jovem pastora, era um fenómeno!
Cansada de tanto alarido, a moça regressou à Aldeia dos pais.
Junto à montanha reencontrou, cheia de felicidade, o seu cão, as ovelhas, as ervas mais verdes e tenras do alto. Ali tudo permanecia como dantes. Ao alvorecer o galo cantava. Logo cedo havia que tratar dos animais. Nas subidas pela encosta, com o rebanho e o vento, encontrava renovado prazer.
Certa tarde, andava Rosa Branca pelos campos e sentiu a chegada de um automóvel. Nele vinha Jacinto, já completamente recuperado da doença. Queria agradecer-lhe a sua cura. E a moça levou-o a passear pelas encostas da montanha e junto ao ribeiro.
Muito conversaram Rosa Branca e Jacinto, e a pastora confidenciou ao rapaz o seu segredo.
No cimo do monte, observando juntos a imensidão dos céus e os cúmulos enormes que avançavam, tridimensionais, brancos e magníficos, Jacinto sentiu também o vento no interior de si. E mais não foi necessário para que de mãos dadas viajassem os dois, cheios do ar puro das alturas, tão majestosos como as nuvens do céu.
Para Rosa Branca e Jacinto o futuro estava traçado. O vento unira-os e nada podia separá-los.
Casaram na Aldeia, numa festa que reuniu a família e os amigos. Depois partiram, felizes.
Agora vivem em África, onde se dedicam a auxiliar as populações pobres e isoladas. Transportam e distribuem notícias, livros, alimentos, água e medicamentos. Nas escolas e hospitais sitos nos mais recônditos locais do continente africano, os seus nomes soam a esperança. Pela savana são familiares as suas figuras esvoaçantes.
Sem a intervenção da televisão e dos jornais, os actos de Rosa Branca e Jacinto não são dados a conhecer ao mundo, mas ficam guardados, com eterno reconhecimento, no coração das crianças, mulheres e homens a quem ajudam.
De quando em quando Rosa Branca e Jacinto voltam à Aldeia, com os seus filhos, Jasmim e Violeta.
Pela tarde, brincando com o cão ou colhendo flores amarelas na montanha, todos voam com o vento!
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quarta-feira, 22 de julho de 2009

OS GANSOS, poesia de Maria da Fonseca

The Goose Girl (The Duck Pond), circa 1890
by
Camille Pissarro
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Como a tarde cai amena
Sobre o parque da cidade!
Seu lago é cheio de vida
E seu perfume é saudade.

A deslizar sobre a água
Vão os cisnes elegantes,
Enquanto os lindos patinhos
Andam à volta, inconstantes.

São os risos das crianças
E a brincadeira das aves,
A quem elas dão comida,
Duas notas bem suaves.

Mas atenção, de repente
Ouvem-se gritos na margem.
Aparecem quatro gansos
Vindos de trás da folhagem.

Eles estão lado a lado
Com seu ar de importância.
Levantam as suas asas
E olham com arrogância.

Num ápice estão no lago
A nadar com decisão.
Seus gritos tão estridentes
Quebraram minha ilusão.

Ficou um ganso na relva!
Um filhote que parou,
Mostrando um certo receio,
À água não se lançou.

Volta o parque da cidade
À sua alegre harmonia,
E volta o meu coração
A aceitar a fantasia.
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domingo, 19 de julho de 2009

A FLAUTA MÁGICA, história da Avómi



Era um barulho ensurdecedor na capoeira e ninguém sabia porquê.

- Có, có, ró, có, có, có,
có, có, ró, có, có, có,
có, có, ró, có, có, có...

O Senhor Pinto, já cansado de ouvir tanto barulho, saiu de casa e foi até à capoeira, que era ao fundo da quinta.

Estava uma noite péssima, e chovia torrencialmente. O vento abanava as árvores e, mal o Senhor Pinto se descuidou, virou-se-lhe o guarda-chuva e ficou molhado que nem um pintainho, mas nem por isso deixou de ir à capoeira, para tentar por termo à guerra que lá existia.

Quando lá chegou, ficou todo arrepiado, porque aquilo era um pandemónio; desde penas pelo ar, peles arrancadas, pernas partidas, havia tudo que lhe desagradava. Muito zangado, entrou na capoeira, mas por mais que gritasse para se fazer ouvir, as galinhas não o ouviam e continuavam aos pulos, picando-se umas às outras com o seu có, có, ró, có, có ensurdecedor.

O Senhor Pinto, furioso, sem conseguir aquietar as galinhas que além de se picarem umas às outras, ainda o picavam no meio daquela confusão, saiu, voltou a casa e disse à mulher:

- Ó mulher, não sei que hei-de fazer! As galinhas estão todas loucas e não consegui sossegá-las. Vai lá tu, que és mais paciente e talvez consigas alguma coisa.

A Senhora Pinta, muito senhora do seu nariz e convencida que resolvia todos os problemas, disse:

- Claro que vou conseguir! Tu não conseguiste, porque não usaste a cabeça para pensar. Bastava que tivesses levado a tua flauta e tivesses tocado aquelas melodias lindíssimas, que tão bem sabes tocar, e elas ficariam logo quietinhas.

- Achas que daria resultado, mulher?

- Claro que sim, homem! Os animais gostam de música! Quem é que não gosta de te ouvir tocar flauta, marido? Se fores até à capoeira com a tua flauta e proporcionares às galinhas uns momentos de bela música, garanto-te que ficarão deliciadas e paradinhas a escutar. É certo que, depois de tamanha revolução, muitas delas devem estar feridas e há que tratar delas, mas irei contigo, levarei a malinha dos medicamentos, e enquanto tu tocas flauta, eu vou pegando uma a uma, para tratar os ferimentos.

Estou a pensar, que o causador daquelas guerras, é aquele galo grande que comprámos há dias! Antes elas davam-se tão bem!

- És capaz de ter razão, mulher!

- Tenho, tenho, não tenhas dúvida! Mas para termos a certeza absoluta, vamos experimentar tirá-lo de lá e logo veremos.

Dirigiram-se ambos à capoeira, a Senhora Pinta com a mala dos medicamentos e o Senhor Pinto com a flauta mágica que, pelo caminho, começou a tocar. Quando chegaram ao galinheiro, já as galinhas estavam sossegadas e a beber água nos bebedouros, para refrescarem os bicos.

A Senhora Pinta começou imediatamente a tratá-las, pois estavam todas feridas, e o Senhor Pinto foi tocando uma linda melodia, para as acalmar.

Depois de todas as galinhas tratadas, retiraram o galo da capoeira e daí em diante não houve mais guerra entre os galináceos.

Ah, esquecia-me de dizer que o Senhor Pinto, apesar da paz que passou a haver na capoeira, continua a ir tocar lindas músicas, para distrair as galinhas. Sempre que isso acontece, elas ficam tão quietas e fascinadas, que causam admiração.
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terça-feira, 14 de julho de 2009

LEVAVA EU UM JARRINHO, poesia de Fernando Pessoa


Levava eu um jarrinho
P’ra ir buscar vinho
Levava um tostão
P’ra comprar pão;
E levava uma fita
Para ir bonita.
Correu atrás
De mim um rapaz:
Foi o jarro p’ra o chão,
Perdi o tostão,
Rasgou-se-me a fita...
Vejam que desdita!
Se eu não levasse um jarrinho,
Nem fosse buscar vinho,
Nem trouxesse uma fita
Para ir bonita,
Nem corresse atrás
De mim um rapaz
Para ver o que eu fazia,
Nada disto acontecia.



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domingo, 12 de julho de 2009

O MENINO RABINO, história de Ilona Bastos


Era uma vez um Menino Rabino que não parava de falar. Falava sozinho. Falava aos pássaros, que lhe respondiam em alegre chilrear. Falava às flores, que encenavam danças ao vento. Falava ao próprio vento, que desconversava em rabanadas vigorosas. E por vezes falava às pessoas, que o ouviam, surpreendidas, não entendendo as suas palavras. Então, o Menino esbracejava, lançando os pequenos punhos ao ar, para em seguida os baixar e continuar o seu caminho.
Por tudo se interessava o Menino, de olhar irrequieto, observando, tacteando com os seus deditos gorduchos, depois atirando: a bola em que pegara; o carro dos bombeiros, buzinando, estridente; o coelho de peluche, de dentitos atrevidos; a revista rasgada, salpicando a cor dos anúncios pelo chão da sala.
Que intrigante, o Menino Rabino! Meiguinho, de acariciar na maciez das suas bochechinhas coradas ou no dourado do seu cabelo suave. E falador, sempre, sempre. Se alguma coisa lhe diziam, o Menino Rabino, com os olhos redondos, malicioso, sorria, e logo iniciava o seu discurso próprio, com palavras que só ele conhecia, muito enfáticas, veementes, exclamativas!
Certo dia, foi o Menino ao campo. Brincou com os esquilos descarados que de árvore em árvore saltitavam, surripiando nozes. Banhou-se no lago, por entre os reflexos dos raios solares e o luzir das escamas dos peixinhos vermelhos. E arranjou um amigo. Era um sapo pequenino e verde, que lançava "croacs e crancs" à sua volta, com surpreendente energia.



Curioso, o Menino Rabino pegou no sapinho e, com uma habilidade insuspeitada, a que deu auxílio a vontade do engraçado batráquio, meteu-o dentro de uma caixa de plástico que transportara os pães para o piquenique.
De regresso a casa, sem chamar a atenção sobre o seu companheiro de viagem, veio o Menino Rabino, bem-comportado, empoleirado no estofo do automóvel, espreitando as árvores que à beira da estrada com eles se cruzavam - alongadas nuvens de verde brilhante - a grande velocidade.
No seu quarto, encontrou o Menino adequado recanto para o visitante que, maravilhado, o olhava. Do jantar, comido em silêncio, retirou uma malga de água que para o esconderijo levou, à socapa. E ninguém desconfiou de nada, pese embora o facto de o Menino não falar, o que não era seu hábito.
Com o amigo, no quarto, também a conversa não era necessária. Por estranho que pareça, bastava um sorriso, um gesto, um olhar, e logo se entendiam. Tudo estava dito.
O sono da noite foi bom para os dois que, já depois de apagada a luz, a janela aberta, a cortina afastada, olharam as estrelas até tarde. O cantar dos grilos fez-se nítido por entre o ladrar dos cães, ao luar. Soltaram ainda pequenas gargalhadas a respeito de uma borboleta nocturna que, desastrada, dava turras num candeeiro de rua. Chegaram mesmo a sentar-se no parapeito baixo, de rés-do-chão, e espreitar os ratitos pequenos que rapidamente atravessavam a relva.

Finalmente, adormeceram, felizes.
No dia seguinte é que foi a verdadeira surpresa. Não por causa do sapinho, naturalmente, que se escondeu, por quaisquer artes mágicas, e não foi encontrado. O espanto estava no Menino, que não falava. Sim, de tão falador que era, tornou-se silencioso. E no entanto, não estava triste. Continuava a mostrar interesse por tudo, mas um interesse mais recatado - como direi? - mais sério, como que mais importante. Tão importante que nem dava resposta à mãe quando lhe perguntava se queria leite, ou pão, de que tanto gostava. E, de corrida para o quarto, lépido, ocultando um sorriso matreiro por entre as mãozitas fechadas em concha, acabava na risota com o seu amigo sapinho.
Rebolavam, a rir, sobre a manta azul que cobria o chão. O Menino Rabino tinha um segredo e ninguém o sabia. E o sapito, tão esperto que era, não se deixava apanhar.
Quantas brincadeiras, às escondidas, no quarto! E depois, durante a noite, a ousadia de saltar para a relva e jogar à apanhada, saltitando por entre as árvores do jardim. Estando mais fresco, enfiavam gorros, cabeças abaixo, e cobriam-se com mantas. Quando aquecia, salpicavam-se com a água que o Menino Rabino trouxera da cozinha, ou esgueiravam-se até à mangueira, esquecida no pátio.
Bom, o tempo foi passando, e um belo dia, sem avisos nem despedidas, o sapinho desapareceu. Isso mesmo. O Menino chegou a casa, vindo da escola, e procurou o seu amigo: debaixo da cama, onde às vezes gostava de descansar; em cima do armário, onde se acomodava para o surpreender; rentinho à cómoda, junto aos automóveis, onde frequentemente meditava. E nada. O sapinho não estava lá - apenas a janela aberta.
Ágil, o Menino saltou o parapeito, e tudo lhe pareceu diferente. Não pior, nem mais feio. Somente diferente. Do sapinho, nem sombra.
Ao fundo, rosadas, as nuvens pincelavam tonalidades lindas ao pôr do sol. Alguns pássaros chilreavam. E foi então que o Menino percebeu. Ou melhor, não percebeu!
Não percebeu o que os pássaros diziam. Em contrapartida, o seu canto... Que melodia!
Uma leve brisa soprava, e ao Menino soou a vento, vento agradável e fresco, mas que nenhuma mensagem lhe trazia.
As flores fechavam-se, ao cair da noite sem lhe contar as novidades do costume, que o faziam sorrir. Porém, a cor das suas pétalas encantou o Menino, que as achou encantadoras, nas suas roupas de festa!
O Menino voltou a trepar à janela e entrou no quarto. Por momentos, a ausência do sapinho, seu companheiro, tomou-o de melancolia. Mas foi só durante dois segundos!

Rapidamente, correu para a porta, atravessou o corredor e entrou na sala, onde a mãe punha a mesa, sem palavras, já acostumada aos silêncios do filho.
Então, o Menino Rabino - mais menino, mais rabino do que nunca! - correu de bracitos estendidos para abraçar a mãe.
- Mãe! Mãe! Amanhã vamos dar um passeio ao campo, está bem?
E a mãe percebeu!
A partir desse dia o Menino voltou a falar. Só que de uma maneira diferente: não falava sempre, mas sempre que falava todas as pessoas o entendiam.
Também o compreendeu o sapinho, nosso conhecido, quando o Menino Rabino o reencontrou, meses mais tarde, numa patuscada com os pais à beira do lago. Chefe de família ajuizado, já não soltava à toa os seus “croacs e crancs", mas ao Menino Rabino cumprimentou com grande alegria. Juntos, recordaram as brincadeiras passadas, e ainda soltaram umas belas gargalhadas.
Não se espantem por o sapinho compreender o menino agora que ele falava como todas as outras pessoas. É que os amigos, independentemente da língua que utilizem, sempre se entendem!
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quinta-feira, 2 de julho de 2009

A PANTUFA DO RICARDO, poesia de Maria da Fonseca



Ficou bem na nossa casa,
A pantufa do Ricardo.
Por sinal ‘stava escondida,
Onde sempre, as minhas, guardo.

Como choraste, Menino,
Por não achares a pantufa!
Procuraste incomodado
Numa grande lufa-lufa.

O teu Anjinho da Guarda
Não quis que ninguém a achasse.
Foi uma procura em vão,
Para que ela cá ficasse.

Qual é dos teus dois irmãos
O que faz mais travessuras?
Qual deles o mais traquinas
A aumentar tuas agruras?

Terá sido o Miguel gémeo
Que arranjou esta embrulhada?
Aprendeu “arruma, arruma”,
E a acção associada!

Ou o David, mais velho,
Que gosta de te assustar,
De pregar sua partida,
Só para te arreliar?

Ricardo, eu nunca me esqueço
De vós, meus queridos Netos.
Mas, a pantufa ficou
Pra recordar meus afectos.
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